Reminiscências da vida em supermercado
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Uma pergunta bastante pertinente aos que lidam com os principais índices estatísticos é qual a experiência que eles têm no tema do próprio índice. Um exemplo é o índice de preços no varejo. Será que os estatísticos sabem como funcionam os supermercados? Será que sabem como são administrados e como se tomam as decisões? Será que a política de promoções pode afetar o IPCA? Vejamos.
Os marqueteiros, que costumam dar a si mesmos ares de magos, citam fatos pretensamente milagrosos como a correlação entre fraldas e cerveja detectada nas lojas estadunidenses da Walmart. Eles chegaram à fantasiosa explicação de que eram as esposas que, às sextas, ligavam para seus maridos, pedindo-lhes que trouxessem fraldas na volta do trabalho. Então, estando no supermercado, o marido aproveitava para comprar cervejas para o fim de semana. Por causa dessa correlação, passaram a colocar cervejas e fraldas lado a lado nas gôndolas. Os professores da área não costumam contar aos alunos que, na verdade, essa correlação foi calculada estatisticamente, graças ao aumento da capacidade computacional somada a uma boa gestão dos bancos de dados, que se costuma chamar de “big data”. O termo vem de que o número de itens chega aos cinquenta mil por loja e, numa rede com mais de trinta lojas, esse número chega aos cem mil, se consolidados os estoques loja a loja. Hoje, as redes de varejo conseguem estabelecer a correlação de “tudo sobre tudo” em menos de uma hora de processamento, o que, trinta anos atrás, levava um dia ou mais.
As melhores administrações montam suas promoções emparelhando produtos de alta correlação e dando descontos tal que a venda de uns impactem positivamente na venda de outros. Numa sexta-feira, prevendo o churrasco do fim de semana, se houver um estoque elevado de cerveja, faz-se uma promoção na picanha, impulsionando a venda da bebida com uma perda minimizada de margem na venda global do açougue como departamento. Assim, se o estatístico coletar preços numa sexta-feira, os encontrará distorcidos, subestimando o preço da picanha. Por causa disso, para os cursos de administração de varejo que dei, elenquei os dez mandamentos do bom administrador:
- O supermercado não vive de vender, vive de comprar. Os preços na gôndola são manipulados e o que garante a lucratividade é a compra bem negociada, pois minimiza os efeitos danosos das promoções.
- O supermercado não presta serviço ao consumidor, mas ao produtor, pois é ele que se encarrega de levar o produto adiante, cobrando a margem como prêmio. Isso faz com que o departamento de compras seja o mais privilegiado porque, a rigor, é ele que seleciona os verdadeiros clientes, que são os produtores.
- Para quaisquer efeitos, a mercadoria pertence ao fornecedor até que passe pelo checkout. Exemplos são biscoitos e laticínios e demais itens com limitado prazo de validade cuja reposição é feita diretamente pelo fornecedor. Nesses casos, é o fornecedor que vai à loja, recolhe os produtos próximos do vencimento, calculam a quantidade vendida, repõem o estoque e emitem a nota de venda.
- O prêmio varia consoante a posição das gôndolas e o local em que os produtos estarão nelas. Uma ponta de gôndola na primeira rua é o que há de mais caro, ou seja, com a maior margem para o supermercado.
- A qualidade do produto não importa. Isso é problema entre o comprador e o fornecedor, o supermercado só liga as pontas, mais ou menos como a Uber alega trabalhar, eximindo-se de qualquer responsabilidade pelo resultado da transação. Se houver cacos de vidro nas fraldas, ou dedos de trabalhadores nas garrafas de refrigerante, é lá com o SAC do fornecedor, o supermercado não tem nada a ver com isso.
- A gôndola não pode ficar quase vazia porque dá a impressão de que os produtos são sobra, portanto, velhos.
- As gôndolas não podem ficar abarrotadas porque dá a impressão de encalhe.
- O primeiro relatório a ser entregue à administração é o de estoque-zero porque, no varejo, não existe venda postergada, só existe venda perdida. O consumidor não pergunta quando o item vai chegar, ele compra em outro estabelecimento.
- A compra por impulso pode chegar a 40% do faturamento bruto da rede, assim, não se pode permitir que o consumidor vá diretamente ao item desejado, obrigando-o a passar pelo supermercado inteiro antes de chegar ao caixa, daí grande parte das lojas terem mão única, induzindo o consumidor a ziguezaguear entre as gôndolas.
- Existem apenas três itens que jamais podem faltar seja qual for o preço, não importando de onde venham, são tomate, cebola e batata porque, se um deles faltar, o consumidor larga o carrinho e vai ao concorrente. Interessante é que os três itens podem variar em qualidade e destinação, como tomate para molho ou salada, assim como a batata pode ser para cozinhar ou para fritar, essa regra da venda em trio não muda. O resto da feira respeita a sazonalidade, mas não esses três itens.
Parece natural que, em o varejo constituindo seu portifólio consoante a oferta, os índices de preços sejam manipulados pelas grandes redes. Até que ponto os índices de preços refletem essa manipulação?
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
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