Entre o céu e a terra, no caminho das águas.
por Túlio Muniz
Tão recente quanto é a criação do conceito “Antropoceno” é a sua discussão no campo da História. O conceito tem origem precisamente datada, na fronteira entre os sécs. XX e XXI. Conforme descreve Freyesleben:
A autoria do termo Antropoceno costuma ser atribuída ao químico atmosférico, Paul Crutzen, e ao especialista em ciência marinha, Eugene Stoermer. Durante um evento científico em 2000, ambos teriam sugerido que o termo indicaria com mais precisão a época geológica atual do que a palavra Holoceno. De fato, a sugestão ganha maior notoriedade após o artigo Geology of mankind publicado por Crutzen na revista Nature em 2002 (FREYESLEBEN, 2022, pg.15).
Entretanto, compreender a eclosão do período e suas consequências atuais requer uma reflexão, ainda que introdutória, acerca de sua historicidade. Nossa intenção neste ensaio interdisciplinar é de, primeiro, nesta brevíssima introdução localizarmos o Antropoceno no tempo histórico e, a posterior, focarmos num estudo de caso específico: a relação entre o humano e a Natureza, tendo por recorte espacial o território marítimo português.
Atualmente é praticamente consenso, também nas Humanidades, que o Antropoceno se tornou evidente e acelerado a partir da Revolução Industrial iniciada no séc. XVIII, o que nos permite denominá-lo como um acontecimento de Longa Duração, ou seja, aquele que se desenvolve num tempo alargado, imbricando tempo geográfico e tempo histórico, e que advém da ação humana diretamente relacionada ao meio onde se vive (cf. BRAUDEL, 1983, p. 25). Afinal, já lá se vão quase três séculos e meio da invenção de um dos pilares da Revolução Industrial, a máquina a vapor movida à combustão de carvão mineral, que fez da maquinação substituindo a manufatura o marco inicial da aceleração da poluição atmosférica pelo homem.
Contudo, para evidenciar e fortalecer a análise de Longa Duração do Antropoceno, é pertinente estendê-la e retroceder ao séc. XV, estabelecendo uma relação direta com a Conquista das Américas, que vai colocar em contato diferentes povos de toda a parte do Globo como nunca antes ocorrera na História humana, tendo por caminho a travessia do Atlântico que foi
rota da primeira grande expansão do capital europeu acumulado, e gérmen do capitalismo. Seus principais elementos foram: 1) a adoção do sistema de seguros e o financiamento a juros das navegações e do tráfico pelos banqueiros e cortes abastadas da Europa, e, 2) expropriação de terra através do massacre dos indígenas, e da utilização de mão de obra escrava para exploração e escoamento de produção oriunda da devastação florestal, da plantation e da mineração (MUNIZ, 2019, pg.2).

No Hemisfério Sul, a viabilização da intensificação do tráfego oceânico entre as colônias e as metrópoles se deu pela extração do ouro e da prata, mas também da madeira americana, sobretudo o pau-brasil. Desde sua chegada à América, os portugueses denotaram voracidade ímpar na extração de madeira, conforme notou Warren Dean:
Um dos primeiros atos dos marinheiros portugueses que, a 22 de Abril de 1500 alcançaram a costa sobrecarregada de floresta do continente sul-americano (…) foi derrubar uma árvore. Do tronco desse sacrifício ao machado de aço, confeccionaram uma cruz rústica – para eles o símbolo da salvação da humanidade. Uma missa foi então celebrada aos pés dessa cruz, durante a qual, para a satisfação dos portugueses, os indígenas ali aglomerados imitaram sua postura ali ajoelhada, com as mãos em prece, embora não imitassem suas expressões devotas. (…) Os indígenas, que inocentemente se irmanaram com eles naquela praia, não faziam ideia, tal como as árvores às suas costas, da destruição que essa invasão causaria (DEAN, 1996, pg. 59).
A Mata Atlântica brasileira foi assim a primeira a sucumbir diante da devastação florestal iniciada há mais de 500 anos, o que estabeleceu uma mentalidade política-governamental e mercantilista duradoura no Brasil (pertinentemente analisada por PÁDUA, 2002), no sentido de que a devastação da natureza justificaria e legitimaria o ‘progresso’ da Nação, e o Atlântico serviu-lhe de rota de escoamento. Inaugurou-se assim uma nova era da História humana, a “História de além-mar” (WESSELING, 1992, pg. 105), cujo desafio “é apresentar uma forma moderna de história mundial” (WESSELING, idem).
Há, portanto, uma relação histórica direta entre a devastação da flora americana e o Oceano. Relação essa que se prolonga na atualidade, com efeitos deletérios para ambos, a terra e o mar: ainda no XXI a devastação da floresta e do solo (pela mineração clandestina) prossegue Amazônia adentro, acelera o aquecimento global e o consequente aumento no volume de água nos Oceanos, dois dos efeitos mais evidentes e nefastos do Antropoceno.
Priorizar a atenção para a trajetória e presença humana nesse processo talvez seja a principal contribuição da historiografia e das demais Ciências Humanas e Sociais no entendimento e superação de consequências deletérias do Antropoceno, numa era na qual outras áreas científicas dividem seus interesses, muitas vezes voltadas mais ao espaço sideral do que o terráqueo. Cremos que seja um contributo válido propormos esta análise, estabelecendo um recorte temporal-geográfico tendo em perspectiva os Oceanos, essa massa de liquidez entre a solidez da terra e etéreo do Zênite.
Advertência prosseguimento deste ensaio, no item a seguir, não desdenha da importância da Astrofísica ou da Astronomia. Não é essa nossa intenção, pois escaparia às nossas competências tecer uma crítica melhor estruturada a respeito. E até porque existe um inusitado paralelismo entre o ofício do historiador e o do astrônomo a perscrutar o universo através de potentes telescópios espaciais que recebem imagens de eventos ocorridos há milhões, mesmo bilhões de anos-luz: ambos estão a olhar para o passado para se chegar a uma melhor compreensão do presente.
O CÉU É O LIMITE?
Causa certo furor, neste início da terceira década do séc. XXI, as constantes e já comuns incursões de tripulações espaciais alçadas à órbita terrestre por meio de financiamentos e naves privadas. Os bilionários da Terra se lançam rumo ao espaço como quem sai à rua ao volante de seus carros. Navegam por poucas horas, às vezes minutos, flutuam dentro de seus (caros) brinquedos siderais e retornam ao solo firme, orgulhosos de si mesmos e de seus feitos efêmeros, embora busquem lhes dar o tom de verdadeiras odisseias. Em suas narrativas maravilhosas, não comentam que, em órbita, há imensa poluição de lixo a flutuar, derivado dos dejetos humanos lançados desde a fase espacial da Guerra Fria, e que suas incursões resultam também em mais resíduos que, caso não se desintegrem na reentrada atmosférica, um dia cairão alhures, ou, como é mais frequente, cairão nos Oceanos da Terra, já um tanto saturados de lixo.
E há mais de uma novidade nesses lançamentos: a presença de bilionários entre os novos astronautas denota a intenção de privatização do Cosmo, como foi feito em territórios terrenos, desde os Cercamentos, no fim da Idade Média, e desde o início das grandes navegações e da Conquista das Américas, a partir do séc. XV.
É fato que os voos dos bilionários não eliminam um histórico de sucesso obtido por algumas nações ao empreenderem parcerias e alianças estratégicas para conquista do espaço. A despeito do conflito atual – a guerra iniciada em Fevereiro de 2022 entre a Ucrânia e a Rússia -, e o distanciamento que União Europeia e os EUA impuseram à Rússia (pelo menos até a reascensão de Donald Trump à Casa Branca, em 2025), a Estação Espacial Internacional segue a girar em torno do planeta com tripulantes russos e norte-americanos, agências espaciais nacionais e internacionais (como a Agencia Espacial Europeia, ou European Space Agency– ESA) mantêm pesquisas conjuntas de diferentes países, e mesmo a NASA compartilha, em grande medida, as descobertas dos telescópios siderais Hubble e o James Webb, em busca de conhecer, cada vez mais, o além.
Entre as motivações, está a meta de encontrar planetas nos quais haja ambiente similar ao da Terra, no rastro do antigo anseio humano de deixar seu berço originário, tema acerca do qual há uma vasta filmografia no cinema mundial. Desde a primeira realização do gênero “ficção científica” (Le Voyage dans la lune , ou Viagem à Lua, dos irmãos George e Gaston Mélière, Paris, 1902), no cinema o sonho de Ícaro ganhou longas asas, e a abóbada celeste não mais seria o limite dos sonhos dos homens. Isso não passou despercebido a Bruno Latour, um pensador de referência geral no que conhecemos por Estudos Sociais das Ciências, e, em particular, nas reflexões acerca dos desdobramentos do que chamamos de Antropoceno (LATOUR, 2020, 2018, 2014, entre outros), uma era geológica original, pois que causada e acelerada não só pelos acontecimentos naturais, mas, sobretudo, pela ação e exploração humana sobre o planeta.
Em seu artigo “Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno” (LATOUR, 2014), Latour recorre a ilustrações de diversos filmes recentes (“Gravidade, 2013, do realizador Alfonso Cuaron; “Avatar”, 2009, de James Cameron; “Melancolia”, 2011, de Lars Von Trier) para afirmar que, mais do que manter nossas mentes em ‘mundos da lua’, temos de replantar nossos pés ao chão. Para ele, o Antropoceno exige a ressignificação da condição de nosotros, que de Humanos, sempre em oposição a supostos alienígenas buscados o espaço, temos que nos conceber antes de tudo como Terranos.

Nos chama a atenção que, para Latour, tal transição Humano/Terrano é ilustrada (em seu artigo de 2014) pelo inevitável mergulho nas águas dos Oceanos na cena final da saga da personagem Dra. Ryan Stone (vivida por Sandra Bullock) no filme “Gravidade”. Bastante apropriada a analogia de Latour, sobretudo se lembrarmos que foram nos Oceanos onde se originou a vida animal em todo o nosso planeta. E serão neles que vamos propor, adiante, um mergulho reflexivo acerca de determinadas condições desse ambiente aquático no Antropoceno.
De facto, se as explorações espaciais tornam o Universo cada vez mais próximo aos olhos, também evidenciam que ele é cada vez mais inalcançável, pois não é credível que os humanos (ou Terranos) desenvolvam em breve tecnologia suficiente para romperem os milhões de anos luz que nos separam de planetas hipoteticamente habitáveis. Isso, por ora, só é possível na ficção científica inaugurada pelos irmãos Mélière, atualizada recentemente pelo filme “Interestrelar” (2014, de Christopher Nolan).
O paradoxo é que, desde que a cadela Laika foi arremessada aos céus para não mais voltar e o satélite Sputnik foi posto em órbita (ambos os acontecimentos de 1957), todo o esforço do que até aqui se fez nos lançamentos de objetos e de seres vivos ao espaço em pouco mais de meio século foi imensamente maior – e dispendiosos – que os esforços para se conhecer melhor as profundezas do mar. Tanto que é recente, no período entre 2018 e 2022, o registro de homens a chegarem, enfim, a todos os pontos mais profundos dos Oceanos.
Propomos, nesse trajeto entre Terra e Céus, traçar um breve percurso no caminho compreendido entre o fundo dos Oceanos e a superfície da água. Lentamente, como num exercício de descompressão, pois assim podemos observar como se fazem sentir alguns dos efeitos deletérios do Antropoceno nesse imenso espaço aquático, e em particular, com são percebidos os sintomas de mudança dos tempos por quem dos mares sobrevive, principalmente através das pescas.
Em anos recentes, estudos apontam para o aumento da temperatura e da acidez das águas e da velocidade dos ventos dos Oceanos. O resultado é devastador, chegando mesmo a alterar a velocidade de correntes marítimas a 2.000 metros de profundidade em cerca de “2% por década desde os anos 90, o que se traduz em um aumento de cerca de 5% por década na velocidade das correntes oceânicas” (MESQUITA, 2020),o que provoca desde a desorientação de espécies animais que perdem seus rumos ancestrais.
Há um reflexo direto nas pescas, onde os estoques atuais se reduzem ano a ano, não só por conta do aquecimento global, mas também pela poluição por resíduos sólidos industriais, sobretudo pelo plástico, o que leva a estimativa de que, até 2050, os mares terão mais plástico do que peixes. O plástico, criado por volta de 1911, somente se decompõe 400 anos após sua fabricação. Está presente não só no meio ambiente, mas também do organismo humano, na forma de micro plástico que se imiscui em alimentos que ingerimos (inclusive pescados), e mesmo no ar que respiramos. O micro plástico, um estágio final da decomposição do polímero, é invisível e de consequências imprevisíveis quando se instala em órgãos do corpo humano.
Em Abril de 2022, quando de sua divulgação, o mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC-ONU) provocou reação dramática do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres: o mundo caminha para o desastre, disse ele. A afirmação de Guterres veio no tom que exige a realidade. Segundo o IPCC, ou todos os países do mundo e particularmente os países do Norte e a China e grandes devastadores florestais (como foi o Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro) reduzem as emissões de carbono com urgência, ou o aquecimento global levará ao desaparecimento de um milhão de espécies de animais e da flora global nas próximas três décadas, inclusive nos Oceanos, que ao lado das grandes florestas tropicais são responsáveis pelo resfriamento do planeta e da produção de oxigênio.
Pelo ritmo atual, quando a Primavera de 2022 registrou 62 graus ao sol na Índia, e Janeiro de 2025 foi o mês mais quente da História Terrestre (segundo Copernicus, o observatório europeu do Clima), no fim deste século XXI os Oceanos podem subir em até 2 metros em determinadas zonas, cujos territórios agricultáveis e habitáveis desaparecerão para cerca de 750 milhões de pessoas em todo o mundo, conforme estima o IPCC desde 2019. O degelo acentuado nas calotas polares agravam o risco. “A extensão global do gelo marinho atingiu um novo mínimo histórico no início de fevereiro de 2025 ficando durante todo o mês abaixo do recorde anterior, batido no mesmo período de 2023. Os dados foram divulgados pelo Serviço Copernicus para Mudanças Climáticas da União Europeia (cf. Agência Brasil, , 2025).
As consequências se fazem sentir também nos aumentos de índices de pluviosidade. Um volume adicional de água nos mares provenientes dos degelos resulta em evaporação em maior quantidade, e como nos céus não existem barreiras ou fronteiras físicas, a água volta em forma de tempestades jamais então registradas, prejudicando países mais pobres ou em desenvolvimento, como foi em Bangladesh (2020), no Rio de Janeiro, Sul da Bahia, no litoral Norte de São Paulo e Rio Grande do Sul (Brasil, em 2022, 2023 e 2024), mas também países ricos que estão entre os maiores poluidores, como se deu em determinadas zonas da Alemanha, da Bélgica e dos Países Baixos, em 2021, e na Espanha , em 2024.
As catástrofes são de tal dimensão e recorrência que, por si, o ser humano não se demostra capaz de confrontá-las e superá-las, como pressupõe o apelo cosmopolita de Guterres. Estamos num labirinto cuja saída requer recorremos mais uma vez a Latour. Ao propor que o Antropoceno é também um momento de se priorizar retorno da atenção humana ao seu próprio planeta, mas considerando que o elemento humano não é o único a ser agente e ao mesmo tempo objeto dessa ação, e tampouco o único capaz de resolvê-la, Latour propõe que se olhe para o planeta não como um ‘universo’ humano, mas sim como um espaço múltiplo, pois “falar de ‘Natureza’, de ‘homem na natureza’, de ‘seguir’ a natureza, de ‘voltar’ a ela, de ‘obedecer’ a ela ou de ‘aprender a conhecê-la’ é já ter decidido uma resposta para as duas questões canônicas sobre o conjunto dos existentes e a escolha das formas de existência que os religam” (LATOUR, 2020, pg. 69).
Em outras palavras, é o que Latour propõe em outro momento (LATOUR, 2018) como sua própria concepção de “Cosmopolítica” (ao criticar Hegel e Beck), uma nova concepção de pensamento e ação que vai considerar uma diversidade de atores (sociais-humanos ou não) como agentes na alteração e reconfiguração do ambiente. Para ele, a crítica à concepção original das Cosmopolíticas se deve porque “os adeptos do cosmopolitismo podem sempre esperar ver o dia em que os cidadãos do mundo reconhecerão que habitam o mesmo mundo” (LATOUR, 2018, pg. 9), como se a compreensão geral, global do cosmopolitismo venha a se dar de uma maneira ‘natural’ para todos, o que Latour contesta: “No entanto, a corrente das cosmopolíticas foi construída em torno de uma tarefa central: ver como este ‘mesmo mundo’ pode progressivamente se constituir” (LATOUR, idem). E completa:
Simplesmente, o planeta se dirige hoje, de modo inelutável, para um processo de globalização – o qual, contudo, nada tem de “global”, nem de “metaphysical Globe”, em que cada povo pode encontrar seu lugar e sua função. Assim, essas duas filosofias do cosmopolitismo são deficientes. No momento em que precisamos do Global, elas desabam no coração do Atlântico, sem poder se levantar. Assim, conforme minha análise, uma outra definição de cosmopolíticas pode ser considerada: aquela que não se ligue ao ideal de uma Esfera comum resultante da “ first modernity”. Seria um erro trágico continuar a trabalhar pela paz com base nessa concepção inoperante de cosmopolitismo (LATOUR, 2018, ibidem, pg. 15).
Em tempo: com os EUA sob jugo de Trump, os bilionários que almejam conquistar o espaço sideral orbitam agora o Salão Oval da Casa Branca, emitindo opiniões e ordens que podem potencializar a sanha devastadora do governo norte-americano, que anuncia quebra do Acordo de Paris sobre o Clima, aumento da exploração e uso de combustíveis fósseis, entre outros. Se medidas urgentes não forem adotadas na perspectiva cosmopolítica de Latour, serão muitos os prejuízos nos Oceanos, nomeadamente para países que têm nas pescas e no turismo vínculos sócio históricos e económicos.
O TURISMO
Por Turismo entendemos ser um conceito social e económico relevante. Tanto que, anteriormente à pandemia da Covid-19, o Turismo movimentava cerca de US$1,3 trilhão ao ano (segundo a Organização Mundial de Turismo, ou UNWTO, órgão da ONU). No Antropoceno, são inúmeras as complexidades que se anunciam para as pescas e o Turismo. Compreende-las é ainda mais importante e urgente numa época de colapso ambiental iminente, onde o desastre ecológico global tem reflexo direto nos oceanos. São desastres confirmados ano a ano pelos pelo IPCC, cujo relatório anterior ao de 2022, referente a 2019, já apontava que “mudanças são urgentes; velocidade da subida dos oceanos é o dobro do que era no século 20; em muitas regiões, eventos climáticos que aconteciam uma vez a cada século devem passar a ocorrer a cada dois anos” (ONU, 2019).
A necessidade de se redobrar os cuidados com os Oceanos e para com as atividades inerentes a ele é tamanha que a 2030 AGEND, da Organização das Nações Unidas (ONU, 2015) tem, entre seus objetivos específicos (o de número 14) a recomendar: “conservar e promover o uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”. A preocupação inclusive levou a ONU, sob os cuidados da UNESCO, a estabelecer o período 2021-2030 como a Década da Ciência Oceânica, (UNESCO, 2021), cujo ponto culminante, até agora, foi a Conferência dos Oceanos das Nações Unidas (UNOC2022),em Junho de 2022, em Portugal, que resultou na “Declaração dos Chefes de Estado e de Governo e outros representantes de alto nível”, reafirmando a urgência de cuidar da saúde dos Oceanos. Embora seja ainda um tratado de intenções, a Declaração da UNOC2022 tem importância por ter ocorrido destacada da Conferência das Nações Unidas para o Clima (COP21), que aconteceu em Dezembro de 2022, no Egito. A UNOC2022 reforçou outros objetivos ambiciosos da 2030 AGEND, todos relacionados direta ou indiretamente com as pescas e os oceanos, a recomendar o compartilhamento de saberes e experiências, como explicita o Objetivo 17, que visa, entre outros pontos, “aumentar o compartilhamento de conhecimentos (…); promover o desenvolvimento, a transferência, a disseminaçãobe a difusão de tecnologias ambientalmente corretas” (ONU, idem, 2015).
Faz-se urgente, portanto, mantermos atualizadas as análises e informações comuns acerca das pescas e do Turismo, subsidiando a elaboração de políticas reguladoras e de proteção, ampliando o intercâmbio entre as comunidades litorâneas em todo o mundo, como objetivam os itens 12, 13 e 14 da 2030 AGEND, nomeadamente no que diz respeito à:
– “gestão sustentável e o uso eficiente dos recursos naturais;
– à implementação de ferramentas para monitorar os impactos do desenvolvimento
sustentável;
-ao reforço da resiliência e da capacidade de adaptação a riscos relacionados ao
clima e às catástrofes naturais;
-à gestão, de forma sustentável, e a proteção dos ecossistemas marinhos e costeiros;
-à conservação e o uso sustentável dos oceanos e seus recursos e ao acesso dos
pescadores artesanais de pequena escala aos recursos marinhos e mercados” (cf.
2030 AGEND, ONU, 2015).
E aqui apontamos um fator que nos preocupa em particular: quase sempre as definições de estratégias e políticas de gestão dos mares não convocam, em seus planejamentos, as populações das inúmeras povoações que vivem da pesca nas zonas costeiras, tampouco buscam em experiências estrangeiras a superação para suas próprias adversidades. Aliás, é uma negligência recorrente mesmo entre países que partilham de práticas comuns na pesca, como no caso da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), na qual todos os seus nove integrantes convivem com a maritimidade: seis são costeiros (Brasil, Portugal, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique e Guiné Equatorial) e três são insulares (Timor Leste, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe). Em que pesem diferenças entre suas respectivas indústrias de pesca e na capacidade de produção de cada um, tratam-se de países cujas populações piscatórias, sobretudo as ligadas à pesca artesanal, compartilham de problemas ambientais em comum, bem como de técnicas e saberes que, se colocados em contato, podem apontar para soluções a problemas compartilhados.
Parece-nos ser mais um indicativo que reforça necessidade de atentarmos para o que aqui insistimos, alinhados com a 2030 AGEND e o IPCC: a concertação internacional das ações governamentais e intragovernamentais para as pescas e o Turismo têm que considerar demandas de eventos locais, sejam as de trabalhadores e trabalhadoras do setor, sejam as de seus frequentadores.
Tal meta talvez venha a ser atingida se forem considerados como os imbricamentos entre as pescas, o Turismo e as alterações climáticas são percebidos diretamente pelas populações marítimas costeiras e insulares e como as mesmas assimilam as alterações em seus “mundos do trabalho” (HOBSBAWM)e no cotidiano, visando compreender as interfaces das reelaborações dos saberes ditos tradicionais, diante de novas modalidades econômicas, nomeadamente daquelas advindas de práticas contemporâneas da pesca industrial, da indústria do turismo, alterações da natureza e da especulação imobiliária que em geral acompanha o turismo.
É preciso compreender como os saberes tradicionais de populações costeiras ligadas à pesca podem coexistir com a modalidade industrial do Turismo, e ao mesmo tempo preservar sua originalidade, quando articulados com as modalidades do chamado Turismo Alternativos: o turismo rural, o ecoturismo e o turismo cultural, evitando que o mercado turístico seja pautado maioritamente pelo mero consumo que em geral acompanha essa indústria.
Entretanto, essas populações quase sempre não são ouvidas pelos Estados e organismos internacionais, o que nos leva a concordar com Garrido, quando afirma que “os saberes e actores locais sejam ouvidos e achados nos modelos de regulação das pescas cujo primeiro problema reside no equilíbrio da exploração dos recursos biológicos” (in “Prefácio”, MUNIZ, 2014, pg. 14). Conforme destaca Latour, é preciso “fazer com que a ciência e a política (e muitas outras iniciativas) exerçam duas tarefas essenciais, quais sejam, definir quantas entidades devem ser consideradas e como elas podem permanecer juntas de maneira viável” (LATOUR, 2014, pg. 18).
Um exemplo recente vem de Portugal, no Algarve, no município de Lagoa, onde foi instituído o comité de cogestão da pescaria do polvo na região. Seguindo o especificado pelo Decreto-Lei n.º 73/2020, o “regime de gestão partilhada dos recursos vivos e dos meios necessários à sua captura e aproveitamento económico, o qual visa a gestão sustentável dos recursos e a concretização do princípio da máxima colaboração mútua” resultou, em Março de 2022, na implantação de um comitê quese formalizou em Março de 2022, reunindo estado, ONGs e associações de pescadores, durante o Encontro ParticiPESCA:
Liderado pela Associação Natureza Portugal em associação com a WWF (ANP|WWF) em parceria com o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), o Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve (UAlg) e o Environmental Defense Fund (EDF), financiado pelo Mar2020 e com o cofinanciamento da Fundação Oceano Azul, o ParticiPESCA tem como principal objetivo de implementar um modelo de cogestão para a
pesca do polvo no Algarve, envolvendo atualmente 12 associações de pescadores, que representam centenas de pescadores ao longo de toda a região, e outras entidades envolvidas na pescaria (cf. Associação Natureza-Portugal, 2022).
Iniciativas como esse caso do Algarve são quase sempre exitosas, devem ser acompanhadas atentamente, para que sejam alargadas no espaço nacional português, quiçá internacional. Assim, talvez o compartilhamento das múltiplas práticas das populações pescadoras resolva o dilema colocado por Meneses:
No dealbar deste novo século, o mundo é uma contradição. Por um lado, o progresso da globalização extermina identidades e culturas. Por outro lado, a irrupção dos localismos evidencia pequenas identidades e pequenas culturas. Na teoria, busca-se o entendimento. Na prática, sobressai o desentendimento. Entre a proclamação daquilo que é universal e a defesa daquilo que é local não sobra, aparentemente, espaço para a dimensão nacional (MENESES, 2008, pg. 193).

Conclusão
Nas palavras de abertura de seu “Portugal e o Mar” Pitta e Cunha afirma, com pertinência, que são muitos a associarem o mar
a tudo, menos ao recurso natural e ao activo económico que ele essencialmente é. Para aqueles, o mar é principalmente História e passado, e por isso de pouco nos serve no presente, ou servirá no futuro (…). Para todos os que pensam assim, o discurso do mar é necessariamente um discurso passadista e até saudosista. Nada pode estar mais longe da realidade (PITTA E CUNHA, 2011, pg9).
A acertiva é ainda mais precisa nestes tempos atroponcênicos, onde o desastre que assola o planeta, seja na terra, seja no mar, confirgura o que Latour chama de ‘uma guerra de mundos’, no qual “o deslocamento de uma ciência versus política para uma ciência com política certamente não se dá sem perigo” (LATOUR, 2014, pg. 22). Nesse jogo perigoso, o “cientista engajado” corre o risco de fazer o jogo do “político negacionista”, caso não tome “conhecimento de fatos desconfortáveis” à tematica que defende. Se assim for, o suposto ‘ganho’ da ciência, para Latour, será apenas “pedagógico” e não “político”, e em pouco ou mesmo em nada resultará de concreto se a rigidez científica não se fizer acompanha das “questões urgentes que dizem respeito ao próprio solo habitado por todos” (LATOUR, idem, pg. 20), e não só pelos cientistas e pelos políticos.
Cremos ser esse o papel daqueles e daquelas que analisam os Oceanos na atualidade do Antropoceno: defender a inserção, no embate entre ciência e política, do saber que advém das gentes que lidam com a pesca artesanal, bem como a relevância de suas percepções acerca dos Oceanos do mundo, e do compartilhamento global de soluções que a todas afetam. Pois sim, seus problemas são comuns, independentemene de suas nações, línguas e religiões, e a busca de solução para eles pode estar na consideração de seus saberes e práticas locais na elaboração de políticas econômicas e de intervenção territorial.
Ao contrário dos Continentes, todos os Oceanos se comunicam, estão interligados entre si, e são impactados brutal e aceleradamente no Antropoceno. Este, se não vir a se comprovar como período histórico da inviabilidade da vida humana na Terra, ao menos iniciará uma nova era marcada pelo reposicionamento dos Terranos diante do planeta. Se esta era será mais amena ou severa para a vida como um todo, as ações de agora são o que o determinarão, diante da urgência de olharmos mais para a Terra do que para o espaço sideral, de plantarmos os pés no solo no qual caminhamos e de não naufragarmos nas águas nas quais navegamos.
Antes de findarmos este texto e ancorarmos, vamos uma última vez nos inspirar na verve cinematógráfica de Latour.
Uma melhoria geral das condições de vida de todas as populações piscatória pode e deve ser almejada, para, quem sabe se resolver o dilema exposto pelo personagem de Tom Hanks, no filme “Capitão Phillips” (2013, de Paul Greengrass). Num ponto de alta dramaticidade e violência da trama, o sequestrado norte-americano Phillips vivido por Hanks indaga a um dos sequestradores porque estes não abandonavam a pirataria, pois “seria possível viver honestamente da pesca”. O personagem Muse (interpretado por Barkhad Abdi), que comandava o grupo de piratas somalis, outrora pescadores que perderam território de pesca para a poluição no Índico ocasionada pelo despejo de lixo proveniente da Europa e outras partes do mundo, lhe responde: “Talvez no vosso país, capitão, talvez…”.
TÚLIO MUNIZ, professor na Universidade Federal Rural do Semi Árido (UFERSA), Historiador (Graduação e Mestrado pela UFC) e Doutor na Área de Sociologia (Universidade de Coimbra), e Jornalista Profissional. Autor de “O Ouro do Mar” sobre aspectos globais da pesca artesanal. Tem dupla nacionalidade (brasileira e portuguesa). [email protected]
BIBLIOGRAFIA
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Publicação: Diário da República n.º 186/2020, Série I de 2020-09-23, páginas 2 – 25Emissor: Presidência do Conselho de Ministros. Pagina consultada em 03-05-2022 em https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/73-2020-143527213
– FREYESLEBEN, Alice Fernades, A Terra na História e a História na Terra: Desdobramentos da noção de Antropoceno na narrativa histórica. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2022. Página consultada em 03-02-2023 em https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/79621/R%20-%20T%20-%20ALICE%20FERNANDES%20FREYESLEBEN.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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