Clima: a mais difícil de todas as fronteiras [ou, a fronteira inusitada]
por Rualdo Menegat
Participarei, em 14 de março próximo, em Porto Alegre, de um debate retrospectivo e prospectivo sobre os eventos climáticos extremos que abalaram o Rio Grande do Sul, em 2024. A atividade denominada RS: Resiliência & Sustentabilidade pode ser mais bem conhecida neste endereço eletrônico. Em minha perspectiva, trata-se de um debate crucial, cujo contexto é a emergência climática, questão sobre a qual não se pode ter, apenas, uma perspectiva regional: trata-se de um novo tipo de fronteira, que abrange várias escalas ao mesmo tempo – do indivíduo à paisagem, da plantação ao átomo de carbono – e sentidos – horizontais, da cidade ao rio, e verticais, do chão à atmosfera.
Desde a antiguidade clássica, superar as fronteiras tem sido um desafio para as civilizações ocidentais. Foi para os reis sumérios na Mesopotâmia antiga, assim como foi para os protagonistas da Era Moderna do Ocidente, através do longo período de expansão para as Américas, e o consequente extrativismo irrefreável da natureza e a colonização. Na memória histórica, fronteira significa a mudança de limites do território dominado, entendido como uma porção sólida de continentes e ilhas. Quando as fronteiras desses reinos mudam, diz-se que muda a história (Toynbee, Fernandez – Armesto).
No final dos anos 1960, emergiu uma nova fronteira de expansão. Diferentemente das anteriores, as viagens espaciais foram em busca de fronteiras sólidas não mais em continentes, mas na Lua. Para alcançá-la, precisa-se atravessar o meio gasoso da atmosfera e o espaço sideral. A navegação espacial renovou esse programa colonial de expansão de limites e caminhos de apropriação do território, com a vã ideia de domesticar a Lua ou os planetas.
As imagens da Terra a partir do espaço, revelaram um segredo profundo de nosso planeta: a atmosfera finalmente pôde ser vista como um delgado invólucro azulado cobrindo a um só tempo o planeta e cada um de nós. Essa imagem mostrou claramente que tudo está conectado em uma paisagem global. Ninguém entendeu melhor essa conexão do que o cientista inglês James Lovelock, autor da Teoria de Gaia. Em seus estudos, ele avançou as investigações do geoquímico russo-ucraniano Vladimir Vernadsky e afirmou que a atmosfera planetária é o resultado de sua interação com a biosfera e vice-versa, uma gerando a outra em um processo coevolutivo.

O clima
O sistema climático delimita as fronteiras de distribuição das diferentes formas de vida, da propagação de insetos até a habitabilidade da espécie humana. Ele demarca os limites do hábitat gelado dos ursos e também do hábitat quente e úmido das araras, dos jundiás e dos mosquitos. Não apenas determina a expansão e retração de biomas, mas estes são também sustentáculos dele. Cada grão de areia ou camada de calcário, cada grão de feldspato de um granito sustenta o clima e são por ele alterados. Então, se o clima muda, mudam as estruturas e os padrões que conformam a paisagem da face da Terra, desde a macro até a microescala.
O clima define as fronteiras dos sistemas naturais, entendidas como interfaces de interação entre seus componentes sólidos, líquidos e gasosos. Uma dessas grandes interfaces planetárias é a da biosfera. Localmente, a biosfera é constituída por indivíduos, macroscópicos ou microscópicos, que se agrupam em assembleias de seres vivos e não vivos, formando um ecossistema. Assim, cada região coberta pela rede da vida constitui a impressionante diversidade de paisagens terrestres, sendo interfaces regionais de interação dos componentes do sistema do clima. Por isso, a mudança do clima tem a ver diretamente com a paisagem e a dinâmica natural do local onde vivemos aqui e agora. Essa interação de componentes e processos desse sistema ao longo da história geológica, nos legou a configuração da Terra de hoje.
Essa configuração, entretanto, entrou nitidamente em crise a partir da Revolução Industrial, que se deu com base na queima de combustíveis fósseis: no início, do carvão e, depois, do petróleo e do gás. Ocorre que a queima desses combustíveis, as atividades industriais e de monoculturas geram grande quantidade de gases de efeito estufa. Foi o cientista sueco e Nobel em Química, Svante Arrhenius, quem estabeleceu a equação desse aquecimento. Em 1896, por meio de seus cálculos, ele chegou à seguinte conclusão: “qualquer duplicação do percentual de dióxido de carbono no ar aumentaria a temperatura da Terra em 4°C”. Arrhenius percebeu que as emissões produzidas a partir da queima de combustíveis fósseis e outros processos de combustão já eram grandes o suficiente para provocarem um aquecimento global.
Cerca de 60 anos depois, o químico e geólogo estado-unidense, Charles Keeling, passou a medir a concentração de CO2 no Havaí, um lugar distante das cidades e das indústrias poluidoras. A partir de 1958, ele elaborou uma curva que mostrava um aumento consistente e rápido da concentração de CO2 na atmosfera. Essa curva, conhecida como curva de Keeling, está sendo continuada até hoje e mostra-nos que o teor de CO2 atmosférico já atingiu, em 2024, a marca de 424 ppm. Antes da Revolução Industrial, essa concentração era de cerca de 280 ppm.
Por isso o esforço do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) tem sido o de mostrar que um aumento de temperatura de até 1,5°C acima dos níveis pré-industriais ainda permitiria certa capacidade de resposta adaptativa. Porém, as emissões de GEEs (gases de efeito estufa) não estacionaram e a temperatura média da superfície da Terra, em 2024, foi de 1,64°C, ultrapassando o limiar de segurança de 1,5°C estabelecido, em 2015, pelo Acordo de Paris na COP21.
A avaliação da emissão de gases de efeito estufa e dos impactos das mudanças climáticas em cada região planetária tem sido feita em detalhe pelos cientistas do IPCC desde 1988.. O cenário para a região climática Sudeste da América do Sul (inclui o RS, SC, PR, RJ e parte de MS, SP, MG e ES), publicado pelo IPCC (2023), indica aumento da temperatura média, calor extremo e precipitação anual média, bem como o aumento de inundações e precipitações severas. Também está previsto o aumento do nível do mar relativo, inundações e erosão costeira, onda de calor marinha e acidificação do oceano.
Esses são alguns indicadores básicos das mudanças previstas e já observadas. Porém, como vimos, a mudança climática altera os ecossistemas e seus limites, bem como a extensão de geleiras e florestas, campos e banhados, assim como a disponibilidade de água, entre outras modificações. Pode-se, assim, avaliar os perigos, vulnerabilidades e riscos para cada região e seus ecossistemas, bem como para suas comunidades humanas urbanas, rurais e tradicionais.

Respeitar a fronteira do clima e reconstruir o planeta
A enchente de maio de 2024 no Rio Grande do Sul aconteceu neste contexto. Ela constitui-se na maior catástrofe hidrogeoclimática e socioambiental de uma região metropolitana do Hemisfério Sul. Por essa razão, ela serve de aviso às comunidades nacional e global. Esse desastre foi produzido por um conjunto complexo de fatores. O fator meteorológico foi um dos mais importantes fatores. A chuva intensa de cerca de 800 mm que caiu na região nordeste e central do Rio Grande do Sul em torno de cinco dias deveu-se a uma configuração particular das condições meteorológicas. Mas há um conjunto de fatores locais, geológicos, geográficos, sociais e econômicos que precisam ser colocados na balança, pois amplificaram os riscos dessa precipitação extrema.
O fundamental é refletir sobre a estratégia que vamos adotar frente a estes acontecimentos. Imagino que tenhamos acordo que o melhor não é a reconstrução feita com base nas ideias prepotentes do século XX, que nos trouxeram até aqui. Diferente disso, devemos pensar na ideia-chave da regeneração dos ecossistemas e bacias hidrográficas, desde as nascentes até as desembocaduras dos rios. Considerar o conjunto ecológico e paisagístico onde vivemos tornou-se crucial. Igualmente a regeneração das cidades, que devem ser menos parasitárias em termos energéticos e alimentares. O tecido urbano deve incluir tramas de corredores ecológicos e áreas de minibosques, que funcionam como esponjas e ajudam a regenerar os ecossistemas onde as cidades e as culturas agrícolas estão encravadas. Importante ainda é a regeneração das comunidades, impactadas por uma catástrofe que interrompeu suas rotinas, atividades econômicas e laços construídos ao longo do tempo. Por fim, devemos considerar os limites geoéticos para habitar a Terra na época do Antropoceno. Como disse um sábio líder indígena: “não podemos tomar o lugar que é da água”, pois as consequências podem ser muito severas.
Essas e outras questões sobre a inusitada fronteira do clima, simultaneamente natural, social econômica e cultural serão debatidas no evento de Porto Alegre. E você poderá acompanhar por transmissão direta, que será indicada mais próximo ao evento no site do Projeto (https://www.youtube.com/@fespspcomunica). [Programação e inscrição: rs-resiliente.com.br]
Rualdo Menegat – Professor Titular do Instituto de Geociências da UFRGS, Vice-Presidente científico do Foro Latino-Americano de Ciências Ambientais – Cátedra Unesco de Desenvolvimento Sustentável, Presidente da Sessão Brasileira da International Association for Geoethics, membro da Comissão de Geoética da Sociedade Brasileira de Geologia
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