Violência doméstica e erro de perspectiva. Princípio da ultima ratio
por Carlos Gustavo Maio
Começo a tecer as minhas considerações acerca do papel do Direito Penal no contexto da violência doméstica no Brasil, em apertada síntese, dirigindo-me especificamente aos amantes da estatística: somente entre os meses de janeiro e maio de 2024 foram registradas 380.735 ações judiciais por violência doméstica, estupro e feminicídio no Brasil; no primeiro semestre de 2024 houve um aumento de 36% do número de denúncias de violência doméstica em relação ao mesmo período de 2023 e de acordo com dados fornecidos pelo CNJ, a Justiça brasileira recebe cerca de 2.500 processos de violência doméstica por dia.
Ora, a que se deve este fenômeno se temos em vigor no Brasil todo um arcabouço legislativo voltado especificamente para o combate à violência doméstica nas suas mais variadas manifestações? A experiência empírica tem nos mostrado um aumento progressivo e reiterado dos casos de violência contra a mulher no Brasil desde a publicação da chamada “Lei Maria da Penha” em 2006. A que se deve essa escalada de violência? Será que temos uma lei “branda”? Será que a referida lei “não pegou”? Afinal, por que a lei 11.340/06 não exerce quase nenhum papel de intimidação aos potenciais autores da violência contra a mulher? Por que estes dados estatísticos não arrefecem ao longo dos anos quando, muito ao contrário, só fazem crescer sistematicamente a cada levantamento?
Arrisco-me aqui a provocar uma reflexão quanto a estes questionamentos e para começar a lançar uma luz sobre a problemática suscitada vamos retirar lá do fundo da prateleira da quase sempre desprezada cadeira de Filosofia do Direito, um empoeirado e quase esquecido princípio informador da Ciência do Direito denominado ultima ratio. Oriundo da escola romano-germânica, de ampla aceitação na Europa Ocidental e recepcionado pela ciência criminal brasileira, este princípio diz que somente se lançará mão do Direito Penal se outros primeiros instrumentos de pacificação de conflitos sociais falharem nas suas respectivas missões. Trocando em miúdos: o Estado somente recorrerá ao rigor da lei penal em último caso, pois primeiro é dever do Estado pôr em marcha políticas públicas de educação plena, de acesso ao pleno emprego, de igualdade de oportunidades, de acesso à cultura, de combate à gigantesca concentração de renda que acomete o Brasil.
Somente após postas em andamento de forma efetiva estas políticas públicas falharem, é que deveria entrar em cena a lei penal com todo o seu rigor ontológico para se buscar a paz social que a ação do Estado não conseguiu promover apesar de envidar-se todos os esforços nesse sentido. Segundo nossa orientação, a legislação penal não cumpre seu mister porque há a generalização de uma visão deturpada do Direito Penal na medida em que se exige dele aquilo que ele não se presta a cumprir: paz social. Espera-se, por exemplo, que a legislação criminal forme – através do uso da força, diga-se – indivíduos bem-educados e socialmente inseridos. Ocorre que o Direito Penal não serve para educar. O Direito Penal não possui em sua essência qualquer traço de característica pedagógica. O Direito Penal não se presta à promoção de reinserção social. Estas são missões cujo cumprimento cabe a outras instituições estatais. A função social do Direito Penal é única: CASTIGAR, PUNIR, RETIRAR DO CONVÍVIO SOCIAL O TRANSGRESSOR IRREMEDIÁVEL. Nada mais do que isto. A violência doméstica é mais um caso que serve de exemplo do quanto a sociedade brasileira tem recorrido e esperado do Direito Penal a solução mágica para os graves e complexos problemas sociais pelos quais passa a sociedade brasileira há décadas. A sociedade brasileira cobra do Direito Penal aquilo que ele não entrega: correção de males sociais.
Acreditamos que os números das estatísticas criminais experimentarão queda na medida em que extirparmos da lei penal determinadas funções que não lhe pertencem – daí a origem dos variados e tão prestigiados “Estatutos” em nossa legislação – e, finalmente, aparelharmos e dotarmos o Estado estruturalmente com os necessários instrumentos de promoção efetiva do bem-estar social. Enquanto houver falha grave por parte do Estado na efetivação desta sua missão, continuaremos a formar indivíduos socialmente doentes e cada vez mais violentos de um lado e de outro lado, insistiremos em cobrar da lei penal algo que não conseguirá promover. Se o lar está doente, o Direito Penal jamais será a primeira, única e mais adequada profilaxia.
Carlos Gustavo Maio – Advogado. Professor. Pós-graduado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
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