Por Lelê Teles*
a tarde sendo…
eu caminhava, encharcado de suor, pela densa floresta tropical em busca de mariri e chacrona para me conectar com a rélvica encantaria quando, de repente, me deparo com um ser encantado no meio da mata.
o sol, dourada bola de fogo, esfregava-se na folhagem com preguiça e sono.
um vulto passou por mim na velocidade de um raio, arrancando a folhagem que forrava o chão úmido e formigado.
pensei se tratar do curupira, o grande defensor das matas virgens, mas não vislumbrei naquele vulto repentino a indefectível cabeleira de fogo que emoldura o rosto do nosso diligente ecófilo.
dei a volta no tronco da sumaúma e, surpreso, vi que se tratava do meu velho amigo.
descalço, dorso nu, usando um cocar de penas de arara como coroa e trajando uma minúscula tanga de penachos, o cacique papaku, de cócoras, me esperava.
sapientíssimo amigo — eu o saudei com essa informal formalidade –, que ventos votivos o trazem ao meu encontro?
ele se levantou e inclinou o tronco à minha frente, fazendo uma nipônica reverência.
salve – ele disse –, diga-me, como foi o teu carnaval?
o meu foi foliante e folioso, o dos outros foi o de sempre: muitos dançando, alguns trocando socos, uns sorrindo e outros chorando, mas todo mundo se refestelando à sua maneira.
nem todo mundo, interrompeu-me o silvícola.
sim, eu sei, mas isso é a vida, enquanto uns se encontram, outros se acham. mesmo poetas eloquentes trazem dentro do peito o amargor e a amargura das agruras vividas, mesmo que tenham sido bons vivants a vida toda.
papaku ajeitou o cocar, coçou a orelha e falou:
é disso que queria lhe falar, sobre bonvivanismos e chiliques, ouviste o que disse kakay?
o advogado que gritou fora bolsonaro em roland garros?, perguntei.
sim, estranha criatura esse homem.
ele gosta de poesia.
entre gostar de poesia e poemar a própria existência há um abismo enorme, pequeno gafanhoto.
falas da carta aberta à lula?
mil vezes não, com todas as vênias, aquilo foi venal e vergonhoso, o nosso rábula diplomado chamou o barba de animal doméstico.
sim, foi essa a imagem que ele construiu naquela missiva. tratou lula como um cãozinho de palacete.
um raio de luz solar escapou entre as brechas da folhagem e iluminou o rosto do cacique.
é isso, o do cavanhaque cobrava de lula a fantasia de jararaca que ele vestira outrora, e reclamava que lula não era mais o mesmo, porque que o lula 3 diferia do lula 1 e do lula 2.
mas que disparate, grande cacique.
uma tolice! claro que lula não é mesmo, o nosso molusco preferido agora é um ancião de 76 anos, não é mais aquele jararaca que se empoleirava no teto de uma kombi e, soltando fumaça das ventas feito um dragão, comandava uma multidão de operários.
nem lula é o mesmo, nem o brasil é o mesmo, nem o mundo. heráclito tiraria kakay dessa aporia com aquele simples e manjado aforismo sobre o rio que se renova a cada instante.
papaku acendeu sua chanduca, baforou no ar, cuspiu de lado e completou meu raciocínio:
ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, porque nem o rio e nem a pessoa são os mesmos.
o engraçado, nobilíssimo papaku, é que toda essa gente que reclama do lula doméstico andava a tecer loas a pepe mujica porque o ex-guerrilheiro uruguaio vivia recluso em sua chácara, alinhando seus chakras na paz indispensável aos anciãos.
pois é, o que vale pra mujica não vale pro lula; ora, se mujica, que presidia um país do tamanho de piracicaba, estava cansado demais para bater pernas, imagina lula viajando pra porto alegre, depois pra manaus, depois pro mato grosso e, em seguida, dando uma esticada até rondônia…
parece-me, velho guerreiro, que kakay caiu naquela conversa mole de lula que vivia bradando aos ventos que, apesar da idade avançada, mantinha um tesão de um garoto de 30 anos.
o cacique deu uma sonora gargalhada, espantando um casal de araras que nos escutava do alto da frondosa sumaúma. ele deu mais uma baforada no cachimbo rústico e emendou:
lula usava essa metáfora paudurescente e tadalafílica pra mostrar que apesar da idade tinha disposição pro trabalho, embora o seu ofício não fosse o de foder o brasil.
também acho que lula usou a metáfora errada, grande cacique.
sentamos, os dois, em um tronco de angico. peguei meu curipe e soprei o rapé de paricá nas narinas. fizemos trinta segundos de silêncio. em seguida eu perguntei:
mas se não é sobre a carta, venerando chefe de aldeia, o que mais fez kakay para receber a tua atenta atenção?
ah, queria falar das declarações do advogado de cavanhaque sobre o nosso carnaval apoteótico.
ué, e cavanha cavou alguma maledicência sobre as folias de momo?, eu perdi essa.
perdeste nada, mas conto-te tudo: kakay chamou a sapucaí de túmulo do samba.
com mil diabos, papaku!
e disse mais, filho do vento, com um ar professoral, o leitor do vade mecum afirmou que os sambas-enredo deste ano traziam palavras que o público não compreendia.
pelas barbas de bin laden, que barbaridade!
e não para por aí, o advogado, do alto do camarote onde estava empoleirado, cercado de gente branca e de subcelebridades, disse que não ouviu ninguém cantando os sambas.
mas as pessoas não vão aos camarotes para ver desfiles, papaku, tampouco estão ali para cantar sambas, vão para comer, beber, trocar salivas e exibir caríssimos relógios de pulso.
acredito que o sujeito estava incorporado, filho do vento. tudo indica que aquele kakay ali era apenas um cavalo do carnavalesco paulo barros, que baixou nele como um encosto.
o mesmo vinho, meu amigo papaku, que faz uma senhora ter um tesão de uma adolescente, também faz advogados cometerem esses dolos contra a nossa cultura.
sim, mas se o nosso enólatra tava embriagado ou não, nunca saberemos, o que sei é que a beija-flor, que cantava sobre xangô e ogum, fez paradinha de bateria e a sapucaí cantou um trecho do samba no gogó.
sim, eu tava na arquibancada, arrepiei-me nessa parte.
nesse momento, passou por nós uma vara de porcos do mato, focinhando a terra úmida. as formigas formigando.
veja você, filho do vento, kakay, cuja profissão exige o uso pernóstico e parnasiano de expressões em latim, reclamava de palavras em iorubá ou em tupi que foram inseridas nos sambas-enredo.
no dia da apuração, papaku, um jurado, branco como não poderia deixar de ser, reverberou kakay e diminuiu a nota da unidos de padre miguel, alegando que havia “trechos de difícil entendimento devido ao excesso de termos em iorubá (muitas estrofes)”.
sim, é sempre assim, os brancos se entendem. eles gostam mesmo é da sonoridade da língua inglesa cantada nos rádios e nos programas de auditório.
parece que doeu nos ouvidos de kakay, e de seus colegas de camarote, ouvir o rico e sonoro léxico africano, mantido vivo pela força da oralidade.
data venia, meu pequeno gafanhoto, kakay acha que o povo é tolo e que sábios são os advogados, que usam e abusam de expressões de uma língua morta, oriunda de um império que não existe mais.
concordo, sapientíssimo cacique, kakay deveria saber que expressões afro-ameríndias fazem parte do cotidiano da nossa gente, e que é a língua, esse veículo magnífico, que nos transporta e conecta quilombos, favelas e aldeias.
ofereci meu cantil térmico ao indígena e ele, numa golada selvagem, inundou a garganta com aquela enxurrada de água fresca.
o engraçado, papaku, é que o cavanha não deu um pio sobre a branquitude sem samba no pé atravessando o samba e enfeiando a avenida com suas cinturas quadradas. kakay sequer falou que é vergonhoso que os presidentes das escolas de samba sejam majoritariamente brancos e homens: os pretos cantam, sambam, empurram carros alegóricos e carregam fantasias pesadas, enquanto a branquitude lacra e lucra.
“brancos em cima, pretos embaixo, ainda é normal, natural, 400 anos depois”; papaku cantou um trecho do rap dos racionais.
“e as modelos negras onde estão? desfilam no chão em segundo plano, pouco original, mas comercial a cada ano”, cantamos juntos o outro trecho da música.
eu segui fazendo o beatbox com a boca enquanto papaku cantava racionais. um casal de macacos dançava numa árvore.
enquanto cantava, papaku fez como o mestre dos magos, caminhou cantando até desaparecer atrás do tronco de uma aroeira, e sumiu.
mas deixou pra trás, magicamente, um maço de mariri e outro de chacrona.
agradeci aos espíritos da floresta por ter permitido o encontro com o velho amigo, fiz minha porção mágica e mergulhei na miração encantada.
grilos cricrilavam, sapos coaxavam e o exército de formigas marchava sob a folhagem.
palavra da salvação.
*Lelê Teles é jornalista, publicitário, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
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