“A obra de José Lins do Rego é mais, muito mais do que um documento sociológico; é qualquer coisa de vivo, porque o seu criador lhe deu o próprio sangue, encheou-a dos seus gracejos e tristezas, risos e lágrimas, conversas, doenças, barulhos, disparates, e da sua grande sabedoria literária. Deu-lhe o hálito da vida. Essa obra não morre tão cedo. É eternamente jovem, como o povo; é eternamente triste, como o povo. É o trovador trágico da província”. Otto Maria Carpeaux.

VIDA E OBRA DE JOSÉ LINS DO REGO

José Lins do Rego Cavalcanti (1901/1957) nasceu no Engenho Corredor numa cidade do interior da Paraíba chamada Pilar.

Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa).

Aos quatorze anos de idade, muda-se para o Recife, concluindo o secundário no Ginásio Pernambucano, prestigioso colégio nordestino, por onde passaram Ariano Suassuna e Clarice Lispector.

Na sequência, em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito de Recife, onde conhece e se relaciona com o escritor José Américo de Almeida, um pioneiro daquilo que ficou conhecido como a literatura modernista regionalista, da qual fizeram parte Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz. O pioneirismo deu-se através da publicação do livro “A Bagaceira” publicado em 1928 e considerado o marco inicial daquele movimento.

Durante a Faculdade de Direito, o nosso escritor conhece Gilberto Freire, de quem receberia o estímulo para se dedicar à arte voltada para as raízes locais. Não seria exagero dizer, nesse sentido, que os romances de José Lins do Rego sejam uma expressão literária daquela civilização do açúcar tão bem descrita por Freire no seu “Casa Grande e Senzala.” (1933). O processo lento e paulatino da decadência da economia do açúcar e o declínio da sociedade patriarcal por ela engendrada também encontram paralelo na obra do sociólogo pernambucano, nas duas obras subsequentes: “Sobrados e Mucambos” (1936) e “Ordem de Progresso” (1960).

Também não seria incorreto dizer que José Lins do Rego tenha sido ao mesmo tempo um romancista e um memorialista. A leitura dos livros que compõe o seu “Ciclo da Cana de Açúcar” retrata diretamente experiências da vida do escritor.

Desde a sua infância no Engenho de Açúcar do Avô, situado no interior da Paraíba; na sua adolescência quando é matriculado num colégio de freiras longe dos domínios da Fazenda Santa Rosa; e o seu retorno, já formado em Direito, à casa do avô. Cada um desses períodos da vida de José Lins do Rego são retratados pela literatura memorialista através do personagem fictício Carlos.

A partir de sua infância em “Menino de Engenho” (1932); passando pela adolescência com “Doidinho” (1933); e a chegada da vida adulta através de “Banguê” (1934).

Daí a importância particular de se conhecer a trajetória da vida de José Lins do Rego, que é indicativa de boa parte das suas obras. São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo instaurado pelas Usinas.

Antigos potentados e grandes senhores de engenho se vêm reduzidos à pobreza por dívidas contraídas junto aos usineiros, cujas fábricas têm uma produtividade incomparável com as antigas técnicas de produção de açúcar herdadas do período colonial.

Os usineiros se organizam em sociedades empresariais, emprestam dinheiro aos proprietários de terra com juros usurários e endividam até as famílias mais ricas, que se vêm compelida a entregar as suas terras aos seus credores. A concentração ainda maior de terras é reflexo daquela mudança de horizontes. É justamente este momento em que a grandeza dos engenhos de açúcar já pertencia irremediavelmente ao passado que é objeto de descrição dos livros de Lins do Rego.

Efetivamente, o escritor presenciou em vida um mundo prestes a desabar: e a decadência da tradicional civilização do açúcar, cujas origens remetem aos primórdios do período colonial, é incorporada à visão de mundo do escritor e do personagem que o representa nos romances.

Depois de quase três séculos de predomínio econômico no Brasil, a economia do açúcar decai de forma vertiginosa já em meados do século XIX, sendo substituído pelo café produzido no vale do Paraíba e no interior de São Paulo.

A decadência é algo que também aparece nitidamente em algumas histórias de Graciliano Ramos, escritor que mantinha vínculo de amizade com Lins do Rego. Há um evidente paralelo entre o velho senhor de engenho José Paulino do engenho de Santa Rosa (Lins do Rego) e Paulo Honório de São Bernardo (Ramos): o primeiro retratado por Lins do Rego de forma mais lírica e poética e o segundo retratado por Graciliano Ramos de forma mais árida e distante (não necessariamente marcada pela memória afetiva, como no caso do autor de “Fogo Morto”).

PEDRA BONITA

Há ainda um segundo elemento marcante na produção literária de José Lins do Rego. Trata-se da qualidade telúrica das suas histórias. Elas brotam da terra, com o protagonismo do sertão nordestino como motivo determinante dos enredos: desde a economia do açúcar e do algodão, passando pelos efeitos sociais da seca, o cangaço e o messianismo religioso, todos esses elementos humanos parecem estar subordinados à realidade da terra, estão plenamente aclimatados, podendo-se dizer que o sertão (espaço) exerce protagonismo igual ou até maior do que o sertanejo (personagens).

Essa dimensão telúrica foi levada até às últimas consequências na obra “Pedra Bonita” (1938).

Nela duas localidades do sertão nordestino são literalmente alçadas às principais personagens do enredo: a Vila do Açú e Pedra Bonita.

Duas localidades que mantém hostilidade por conta de um passado trágico.

A cidade de Açu é representativa de um Brasil Oficial, da Igreja Católica dirigida pelo Padre Amâncio e das instituições estatais representadas pelo Prefeito, Coronel Clarimundo, que alcançou o poder por seu o maior comerciante de algodão do local. E pelo juiz de Direito, Dr. Carmo, que vive a contragosto com sua família naquela cidade maldita e isolada dos centros urbanos.

Já Pedra Bonita é a representação de um Brasil fora do controle da institucionalidade. Nela estão os cangaceiros e os líderes religiosos messiânicos que desafiam o Estado e a Igreja, tal qual “Canudos” desafiou a República Velha.

A rivalidade desses dois vilarejos, desses dois protagonistas, teve origem através de um evento mantido em segredo até a metade do livro.

A história se passa alguns anos após a grande seca de 1904. (Essa experiência traumática está viva na lembrança dos personagens.).

Açu é em todos os aspectos um lugar triste. Nunca cresceu, jamais se desenvolveu ou teve algum fausto. A única coisa grande na vila é a Igreja. Padres sem ambição eram encaminhados ao Açu para passar “dias apertados”. O local é frequentado por umas poucas beatas. Dá-se a impressão de que o trabalho diário de celebrar as missas para essas 4 ou 5 almas é uma atividade completamente inútil.

Padre Amâncio chega ao Açu jovem e movido por um sincero desejo de salvar as almas do vilarejo. Sabia de antemão que aquele era um lugar maldito, para onde todos se recusam a ir. Ainda assim, abandona uma promissora carreira eclesiástica para lançar-se à atividade missionária. Abraça Açu com a grande expectativa, a despeito da má fama da cidade.

20 anos de trabalho fizeram envelhecer 40 anos em Padre Amâncio.

Chegou a Açu cheio de vigor e vontade de ser útil ao povo. Esse povo, tão maldito como a sua terra, demonstra a todo o momento não fazer jus aos cuidados do missionário. A maledicência naquele vilarejo é constante. A tragédias de alguns não geram a solidariedade mas as intrigas e o deboche. Homens diariamente se reúnem em frente a uma árvore tamarineira para dizer coisas obscenas e falar mal dos outros. As intrigas políticas em torno do poder local tornam o ambiente ainda mais degradante. O abandono e a pobreza cobram o seu preço e produzem as suas tragédias. As mulheres da igreja atendem às missas para o atendimento de um dever, de uma formalidade, e também se distinguem pela maledicência. Padre Amâncio surge como um único fio de esperança, representa ao menos uma expectativa de tempos melhores. Mas o idealismo do padre é paulatinamente quebrado pela brutalidade da realidade e da terra. Ao final da história, é vencido pelo cansaço e pela velhice.

Uma maldição do passado é a justificativa para o abandono e atraso do Açu.

Essa maldição é revelada ao personagem Antônio Bento, um jovem de 17 anos que é sacristão e afilhado do padre Amâncio. É rejeitado por todos os moradores do Açu por ser oriundo de Pedra Bonita, a cidade (protagonista) hostil, a causa de todos os males do Açu.

O sacristão ignora a razão da hostilidade, escondem-lhe desde menino o segredo da Pedra Bonita. Posteriormente, descobrimos a origem da rivalidade dos vilarejos.

Há muitos anos, um líder messiânico arrebata o sentimento religioso dos sertanejos para constituíram em Pedra Bonita uma comunidade devotada à adoração da figura escatológica do líder. Essa liderança messiânica demanda o sexo das mulheres jovens para gerar a gravidez e o nascimento de crianças que deveriam ser mortas. O sangue as crianças serviria como fonte para a salvação da humanidade.

Um parente distante de Antônio Bento atua como a figura de Judas. Foge de Pedra Bonita e denuncie os crimes daquela cidade às autoridades de Açu, que retornam com a força policial e dizimam todos os habitantes da comunidade religiosa. O paralelo com Canudos é evidente.

“Pedra Bonita” é além de tudo um belo retrato do banditismo social dos cangaceiros. Curiosamente, a violência dos bandoleiros em nada se diferencia do Estado, representado pelos volantes, a polícia estatal que trava uma guerra sanguinária contra os cangaceiros. O sertanejo convive com a desgraça de ser ora brutalizados pelos cangaceiros que roubam, matam e violam as mulheres. E, posteriormente, atacados pelas forças do Estado que prendem e matam todos aqueles suspeitos de colaborar com os bandidos. A figura do volante e do cangaceiro sequer se distinguem.

Pedra Bonita talvez tenha sido a mais triste história contada em prosa do sertão nordestino.

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Last Update: 07/03/2025