A defasagem salarial dos agentes públicos federais tornou-se um dos maiores entraves à estabilidade da prestação de serviços no Brasil. Dados oficiais revelam que, entre 2015 e 2024, os reajustes concedidos aos funcionários públicos federais ficaram, em média, 2,3 pontos porcentuais abaixo da inflação medida pelo INPC, resultando em uma perda acumulada de mais de 20% no poder de compra. Enquanto isso, a arrecadação tributária federal registrou crescimento real de 35% acima da inflação no mesmo período, ampliando o abismo entre a capacidade financeira do Estado e a remuneração de seus trabalhadores.
O artigo 37, inciso X, da Constituição Federal, estabelece que a remuneração dos servidores públicos deve passar por revisão geral anual, na mesma data e sem distinção de índices, para garantir a preservação do seu poder aquisitivo. A Lei 10.331/2001 regulamentou o dispositivo, fixando janeiro como data-base e determinando que o índice de correção seja definido em lei específica.
Nos últimos dez anos, apenas em 2023 os reajustes superaram a inflação do ano anterior, conforme detalha o gráfico ao lado. Nos demais anos, a correção ficou sistematicamente abaixo do INPC, com perdas mais acentuadas entre 2021 e 2022, quando os salários recuaram 5,2% e 4,8% em termos reais, respectivamente.
A Emenda Constitucional 95/2016, que criou o Teto de Gastos, agravou o cenário ao limitar o crescimento das despesas primárias à inflação, tratando a correção integral como “congelamento”. Mesmo após sua substituição pela Lei Complementar 200/2024, que permite aumentos de até 2,5% acima da inflação, o legado de austeridade persiste: entre 2017 e 2022, os salários dos servidores federais tiveram decréscimo real de 8,7%.
Enquanto os servidores acumulam perdas, trabalhadores do setor privado e beneficiários do salário mínimo registraram ganhos reais consistentes. Entre 2015 e 2024, o salário mínimo cresceu, em média, 1,8% acima da inflação (INPC), com exceção dos períodos de 2017–2018 e 2020–2022, marcados por crises econômicas e pela pandemia de Covid–19. Já os acordos coletivos do setor privado garantiram aumentos médios de 3,1% reais anuais, superando a inflação em oito dos dez anos analisados.
Para os servidores públicos, a realidade foi diametralmente oposta. Em nenhum ano entre 2015 e 2022 os reajustes se equipararam ao INPC. A falta de correção integral configura um confisco de renda, avalia o advogado Igor de Hollanda Cavalcanti em recente artigo publicado no site jurídico Migalhas: “A Constituição veda a irredutibilidade salarial, mas a erosão inflacionária não reposta viola esse princípio, reduzindo o valor real do trabalho.”

Fonte: Sindifisco Nacional, a partir de dados obtidos no Portal de Transparência.
A contradição entre a expansão da arrecadação e a estagnação salarial é um dos pontos mais críticos da análise. Entre 2017 e 2023, a arrecadação tributária federal cresceu 28% acima da inflação, enquanto os ganhos dos servidores encolheram 6,3% no mesmo período. Em 2021, por exemplo, a receita avançou 7,1% em termos reais, mas os vencimentos públicos recuaram 2,4%.
A disparidade entre arrecadação e despesas com pessoal acentua-se. De 2020 a 2022, os gastos salariais do Executivo federal caíram 3,1% em termos reais, mesmo com a receita crescendo 4,9% acima da inflação. A redução não se explica por cortes de efetivo: o quadro de servidores federais encolheu apenas 8,7% entre 2015 e 2024 (de 627 mil para 573 mil), conforme o Anuário Estatístico do IBGE.
A combinação entre perdas salariais acumuladas e sobrecarga de trabalho – reflexo da redução de pessoal – alimenta ciclos de greves que paralisam serviços essenciais. Em 2022, paralisações em setores como educação, saúde e fiscalização resultaram em prejuízos de 2,3 bilhões de reais, segundo o Tribunal de Contas da União.
Estudos reforçam que políticas de valorização salarial não geram pressões inflacionárias em economias com ociosidade produtiva, como a brasileira. Entre 2006 e 2016, a correção do salário mínimo pela inflação mais crescimento do PIB impulsionou o consumo e o PIB em 3,2% ao ano, sem impactar índices de preços.
A solução para o impasse, segundo especialistas e entidades sindicais, está na vinculação legal da correção salarial à inflação, no mínimo. Propostas nesse sentido tramitam no Congresso, como o PL 2.345/2023, que busca tornar obrigatória a reposição do INPC na data-base. O texto enfrenta, porém, injustificada resistência do governo e do mercado, a apontar restrições da Lei Complementar 200/2024, marco que, embora permita reajustes de até 2,5% acima da inflação, não os torna automáticos.
Garantir a reposição inflacionária anual é o mínimo para evitar o colapso do serviço público. Enquanto isso não ocorrer, greves e judicialização seguirão como únicas ferramentas de pressão, com elevados custos sociais e econômicos que poderiam ser evitados. •
*Presidente do Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional).
Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Remédio certeiro’