No início de janeiro, o terceiro mandato de Lula chegou à metade. No âmbito da política externa, a tarefa principal do novo governo era romper o isolamento internacional que levou o Brasil à condição de “pária”, como reconheceu o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo. A retomada de uma diretriz com algum grau de coerência não seria tarefa fácil, dado o quadro de fragmentação política da América do Sul, nosso entorno estratégico, após seguidas vitórias eleitorais da direita e da extrema-direita. Somem-se a isso, o enfraquecimento do Mercosul e da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, a destruição da União das Nações Sul-americanas, a aproximação do governo Bolsonaro com a extrema-direita mundial e o desastre econômico resultante da ação de três governos que adotaram duras políticas de ajuste fiscal, entre 2015 e 2022. Nesse quadro, a possibilidade de dar continuidade a algum tipo de integração regional tornou-se mais difícil.

O cenário encontrado pela nova gestão é pautado pelo acirramento das tensões Leste-Oeste, com a deflagração da guerra na Ucrânia em fevereiro de 2022. O enfrentamento na Eurásia logo teve decorrências mundiais, dada a ação dos países da Otan, liderada pelos EUA, pelo cerco econômico, financeiro e comercial ao qual foi submetida a Rússia e pela construção de uma aliança estratégica entre Pequim e Moscou. Longe de ser um embate de ocasião, o conflito consolidou um cenário internacional multipolar, ao mesmo tempo que acirrou a crise dos organismos multilaterais criados no segundo pós-Guerra. O maior sinal da existência de uma aguda crise política geral é que a guerra no território ucraniano ocasionou uma disparada nos preços internacionais de energia, abriu o debate sobre a substituição do dólar como moeda universal e colocou a maior parte dos conflitos localizados, a partir daí, sob a lógica das disputas pelo poder planetário.

Em outubro de 2023, a ofensiva palestina contra a política de Israel em Gaza teve como revide um genocídio que produziu quase 60 mil mortes. O tema do direito palestino a um Estado soberano foi recolocado também no centro da agenda global. Para essa situação complexa, a política externa – aí incluída a diplomacia – brasileira dá seguidos sinais de falta de objetivos claros, hesitações e retrocessos. A grande questão é: por que isso acontece?

O novo governo começou com uma frenética diplomacia presidencial, que levou Lula a realizar uma viagem internacional por mês até a primeira metade de 2023. Em encontros multilaterais e bilaterais, o presidente granjeou simpatias e aplausos, embalado pelo slogan “O Brasil voltou”. Suas participações no G-7 e na Assembleia-Geral da ONU nesse primeiro ano mostraram um político que soube marcar presença e conquistar generosos espaços midiáticos no Brasil e no exterior.

O governo Lula encontrou um ambiente geopolítico diferente, mais tenso e indefinido

Diante de um mundo mais complicado e tenso do que em seus primeiros mandatos, o desempenho presidencial logo se revelou, porém, como uma diplomacia declaratória, incapaz de retomar o protagonismo que o País já teve no continente. As ambiguidades na condução dos negócios externos colocam em dúvida a existência de um rumo definido na área. O Brasil sediou a cúpula do G-20, em novembro último, no Rio de Janeiro. Foi o principal evento da diplomacia brasileira no primeiro biênio. A reunião combinou a cúpula de chefes e altos funcionários de Estado com uma série de eventos públicos, que iam de reuniões com setores da sociedade civil, até shows e espetáculos musicais.

Apesar da competência brasileira em sua realização, a cúpula é atividade de escassos resultados políticos. O documento tornado público ao final contém 85 parágrafos que tocam alguns dos principais problemas da cena contemporânea. Poucas resoluções práticas podem, no entanto, emanar de uma mesa em que inimigos se sentam em busca de pretensas convergências impossíveis, para além de platitudes.

A maior iniciativa da política externa no âmbito comercial desses dois anos foi a conclusão do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia, que se arrastava desde 1999. O tratado vai muito além de uma série de protocolos comerciais e avança em temas como compras governamentais, propriedade intelectual, proteção ao meio ambiente, marcos regulatórios, normas sanitárias e tarifas alfandegárias, entre outras. Empresas de um bloco poderão participar de concorrências públicas em outro. Para o organismo sul-americano há desvantagens claras. Exportador de commodities e importador de bens industriais, o Mercosul terá na queda de tarifas de importação mais impulso ao seu processo desindustrializante. O argumento de reciprocidade no mercado europeu é irreal, na prática. Indústrias de alta produtividade sempre levarão vantagem em relação a concorrentes menos competitivos.

Distanciamento. A nota do Itamaraty não condenou o massacre em Gaza. Castillo não mereceu do Brasil o benefício da dúvida – Imagem: Carla Patino/Presidência do Peru e Bashar Taleb/AFP

A abertura de compras governamentais pode eliminar um vasto setor de pequenas e médias empresas que atendem a demandas locais variadas. Os impactos sobre o emprego aparentam ser negativos. Do lado europeu, países em que a agricultura responde por parcela significativa da atividade econômica – como França, Polônia, Itália e Espanha, entre outros – buscam restringir medidas de abertura comercial. A melhor síntese do acordo foi dada pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que afirmou em Montevidéu, quando as tratativas foram finalizadas, em 6 de ­dezembro último: “O acordo com o Mercosul é uma vitória para a Europa”.

Ao mesmo tempo, há indícios de um esfriamento das relações com nosso principal parceiro comercial, a China. O Brasil nega-se a fazer parte da Nova Rota da Seda, ousada proposta de integração comercial patrocinada por Pequim. A visita de Xi Jinping durante a cúpula do G-20, por sua vez, foi vazia de articulações concretas. Dos 37 documentos assinados pelo líder chinês com o presidente brasileiro, 34 são cartas de intenções, memorandos e protocolos para futuros entendimentos.

A política externa de Lula III começou de fato antes da posse, com o presidente eleito saudando o golpe no Peru, comandado pela então vice-presidente Dina ­Boluarte. Em nota datada de 7 de dezembro de 2022, Lula afirma: “Entendo que tudo foi encaminhado no marco constitucional” (…) Espero que a presidenta Dina Boluarte tenha êxito em sua tarefa de reconciliar o país e conduzi-lo no caminho do desenvolvimento e da paz social”. Detalhe: no fim de janeiro de 2023 as mortes pela repressão política chegavam a quase 50 e o presidente Pedro Castillo fora preso de forma ilegal, condição em que se encontra até hoje.

A alegação de diplomatas brasileiros foi a de que Castillo tentara um golpe. Não é verdade. A assessoria de Lula parece desconhecer a Constituição do país, que reza o seguinte: “Artigo 134º – O Presidente da República tem competência para dissolver o Congresso se tiver censurado ou negado confiança em dois Conselhos de Ministros”.

O percurso preocupante das relações continentais passou também pelo não reconhecimento dos resultados das eleições na Venezuela, em julho de 2024, e pelo veto da entrada do país no BRICS. Trata-se de situação complexa. É bem possível que tenha havido fraude no processo. As instituições do país – possivelmente controladas pelo governo – avalizaram a reeleição de Nicolás Maduro. O não reconhecimento dos resultados implica interferência do Brasil num processo político interno. O passo seguinte seria o rompimento de relações diplomáticas. Lula chegou a sugerir a realização de novas eleições, ideia rechaçada até pela oposição.

A tentativa de dar lições de bom comportamento a um país que sofre cerco econômico de Washington não se repete em ações contra aqueles governados pela extrema-direita. É o caso da reeleição de Nayeb Bukele, vedada pela Constituição de El Salvador. O Brasil manifestou-se apenas formalmente a respeito de grave ato arbitrário cometido pelo governo de Daniel Noboa, no Equador, em abril de 2024. As forças de segurança daquele ­país invadiram a embaixada do México, em Quito, para prender o ex-vice-presidente Jorge Glas, ali asilado. É algo que afronta convenções internacionais e equivale a invasão territorial. No cômputo geral, pode-se dizer que a política brasileira para a América Latina nesse período tendeu a aproximar-se de diretrizes do Departamento de Estado sob a gestão democrata.

Não existe política externa descolada de política de defesa

Há idas e vindas sérias. Como explicar a pusilânime nota do Itamaraty sobre o primeiro ano do ataque militar palestino à potência ocupante, Israel? Ela contraria a classificação que o presidente Lula já dera à ação sionista em Gaza: genocídio. No documento se lê: “O governo brasileiro registra, com profundo pesar, que a data de hoje (7 de outubro de 2024) marca um ano desde os ataques terroristas do grupo Hamas em Israel. (…) A crise dos reféns permanece sem solução, com dezenas de israelenses ainda em poder do Hamas em Gaza. Ao solidarizar-se com as famílias de todas as vítimas e com o povo israelense, o governo brasileiro reitera seu absoluto repúdio ao recurso ao terrorismo e a todos os atos de violência”. Onde está a denúncia dos assassinatos em massa de palestinos? Onde está a denúncia de uma limpeza étnica ainda em curso?

Não existe política externa descolada de política de defesa. Enquanto oficiais brasileiros forem treinados nos EUA e comprarmos equipamentos de Israel, enquanto não tivermos uma indústria militar nacional, enquanto acordos militares trafegarem na contramão da diplomacia, teremos dificuldades internas sérias. Em julho de 2025, o Brasil sediará a 17ª ­Cúpula do BRICS, articulação que preside desde o início do ano, num momento em que Donald Trump faz claras ameaças ao bloco. A intenção de Washington é atrair Índia e Rússia para a sua órbita, criando possíveis arestas entre seus integrantes. Nesse ambiente, cresce o projeto de paulatina saída da economia do dólar no comércio entre países membros. Em meio às tensões, o assessor especial da Presidência da República, Celso Amorim, anuncia os propósitos do Brasil para a cúpula. São eles: “Nem Ocidente, nem Oriente: Sul Global”. A frase parece um desdobramento de uma expressão que balizou o início deste mandato de Lula, o de “neutralidade ativa”. A aparente contradição em termos pode fazer sentido em conjunturas menos complexas. Em tempos brutos, os países podem ser empurrados pelas circunstâncias a tomar posições mais nítidas diante da disputa pela hegemonia global.

Aqui se recoloca a questão formulada no início: qual o motivo de hesitações, ambiguidades e recuos por parte do Brasil no plano internacional? A resposta provavelmente está em problemas domésticos. Um país que tem na atração de capitais externos a qualquer custo, na austeridade fiscal, no corte de investimentos públicos, nas privatizações e no domínio da alta finança como as suas principais diretrizes internas terá pouca margem de manobra para se impor internacionalmente. Faltará solidez e soberania econômica. Um ­país em processo de desindustrialização e sem projeto nacional claro apresenta sérias amarras para realizar uma política externa verdadeiramente ativa e altiva.

Sim, o Brasil voltou. Mas para onde? Para fazer o quê? •


*Professor de Relações Internacionais da UFABC.

Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Diplomacia de eventos?’

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Last Update: 06/03/2025