Nosso 8 de março já não tem o mesmo significado daquele mobilizado por mulheres que lutavam por uma sociedade mais justa no início do século passado. Hoje, flores, bombons e parabéns, aliados a mensagens que ressaltam nossa feminilidade ou elogiam nossa “força”, predominam os discursos que rodeiam essa data. Parece que utilizar o Dia Internacional da Mulher para falar sobre equiparação salarial, reivindicar creches para todas as crianças ou discutir direitos reprodutivos caiu em desuso. O feminismo – e aqui excluímos o “feminismo” liberal, porque entendemos que um feminismo que atende uma parcela tão pequena das mulheres não é verdadeiramente feminista – virou démodé.
Na moda estão as tradwives. Impulsionadas pela onda conservadora e fascista que cresce ao redor do mundo, as esposas tradicionais abandonam suas carreiras para servir à família. Nos moldes da moral cristã, elas são submissas a seus companheiros provedores e devem permanecer em casa: seu papel é limpar, cozinhar e cuidar dos filhos e do marido, entre outras atividades domésticas. Tudo isso, claro, sem perder a “beleza” – segundo os parâmetros da estética da mulher branca e de classe média dos EUA dos anos 1950. O movimento, muito forte nas redes sociais, nos alerta sobre o modo como a crescente onda ultraconservadora deseja que as mulheres ajam.
Há, portanto, uma disputa em torno do signo “mulher”. De um lado estamos nós, a propor que ser mulher é resultado de um processo socio-histórico. Do outro lado estão eles, que consideram a mulher como inerentemente submissa, sensível e cuidadosa. Da mesma forma, disputam-se os significados em torno do Dia Internacional da Mulher. Nessa disputa, os grupos dominantes apagam o histórico de luta por direitos. Ora, se não podem extinguir a data, oficializada pela ONU em 1975, podem alterar seu significado. E o 8 de março transformou-se em um bom dia para presentear as mulheres, exaltando sua essência “feminina” e, ao mesmo tempo, “guerreira”. A luta feminista acabou sendo reduzida a uma mercadoria.
Com isso, tentam apagar a origem operária da data. Não devemos nos esquecer, porém, da grande passeata das mulheres em 26 de fevereiro de 1909, em Nova York, na qual cerca de 15 mil mulheres saíram às ruas em busca de melhores condições de trabalho. Ou da alemã Clara Zetkin, que propôs, durante o II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em 1910, a criação de um Dia Internacional da Mulher e de uma jornada de manifestações sindicais e socialistas dedicadas aos direitos das mulheres. Ou, ainda, das operárias russas que, em 23 de fevereiro de 1917, pelo antigo calendário russo – ou 8 de março de 1917, pelo calendário gregoriano – saíram às ruas para protestar contra a fome e contra a Primeira Guerra Mundial. A data foi adotada pelos soviéticos como o Dia da Mulher Heroica e Trabalhadora, o que foi seguido posteriormente por diversos países.
É a partir de todos esses movimentos sociais, liderados por mulheres que lutavam por melhores condições, sobretudo trabalhistas, que o 8 de março se consolida como o Dia Internacional das Mulheres. Apesar de o movimento ter iniciado há mais de um século e de ter sido oficializado há 50 anos, ainda não superamos algumas daquelas reivindicações e vivemos em uma sociedade profundamente desigual.
De acordo com o 2º Relatório de Transparência Salarial e Critérios Remuneratórios, divulgado pelo Ministério do Trabalho e Emprego em 2024, as mulheres ainda recebem 20,7% a menos que os homens em empresas com cem ou mais empregados. A disparidade é ainda mais acentuada quando acrescentamos o critério racial: mulheres negras têm um salário médio 50,2% inferior ao salário de homens não negros. A igualdade salarial, vale lembrar, é prevista pela CLT desde 1943, mas as empresas não a cumprem.
É hora de retomar a luta por pautas concretas da classe trabalhadora, como equiparação salarial e acesso de todas as crianças às creches
Além da remuneração salarial desigual, há o acúmulo da dupla jornada de trabalho que recai sobre as mulheres. Conforme pesquisa da Infojobs realizada em 2024, 83% das mulheres acumulam a jornada de trabalho remunerado com as tarefas domésticas, e quase metade delas (45%) não recebe ajuda do parceiro ou da rede de apoio. As novas tradwives estão aí para nos lembrar de que o cuidado doméstico não é visto como um trabalho, mas como uma “predestinação” feminina. Para piorar, 70% das participantes declararam ter perdido a oportunidade de emprego devido ao gênero.
Outro dado que podemos incluir nessa lista é o do assédio no ambiente de trabalho. Um estudo conduzido pela consultoria Deloitte no ano passado mostrou que uma em cada quatro mulheres já sofreu assédio durante o atendimento a clientes ou consumidores, além dos assédios cometidos pelos próprios colegas de trabalho. Em resumo, mais dificuldades para conseguir emprego, salário menor, jornada de trabalho maior e ambiente inseguro.
É com um olhar para a nossa história combativa e outro para nossas reivindicações atuais que precisamos urgentemente resgatar o Dia Internacional das Mulheres como um dia de luta pelos direitos das trabalhadoras – e aqui incluímos não apenas aquelas que trabalham fora, mas também as que cuidam da casa. O discurso do “não nos dê flores, nos dê respeito” pode até parecer batido ou mesmo clichê, mas vem perdendo força em uma sociedade que caminha para o ultraconservadorismo de direita.
Nesse sentido, apesar de nos parecer óbvia a razão de existir do Dia Internacional das Mulheres, não há consenso em relação a esse tema. Numa sociedade corrompida pelo conservadorismo cristão e pela ascensão do fascismo, é cada vez mais necessário combater concepções reacionárias sobre o papel da mulher em nossa sociedade. Além de disputarmos os discursos, também precisamos ocupar espaços. Há, no Brasil e no mundo, passeatas e manifestações no dia 8 de março, assim como coletivos e movimentos que se organizam para combater o patriarcalismo e lutar por igualdade durante todo o resto do ano. Este é um convite para todas e todos que acreditam em um mundo mais justo: a hora é agora! •
*Gabriela Moch Schmidt é licenciada em Letras e mestra em Linguística Aplicada pela UFRGS. Atualmente, é professora na rede municipal de Canoas (RS) e integrante do Instituto Cultiva.
Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.