Fazia seis anos que o sul-coreano Bong Joon Ho não lançava um filme novo. Foi o maior interregno de sua carreira, desde que dirigiu o primeiro longa-metragem, Cão Que Ladra Não Morde (2000). É algo muito significativo se considerarmos a Palma de Ouro e as quatro estatuetas do Oscar conquistadas com Parasita, primeira obra em língua não inglesa a conquistar a láurea máxima na premiação norte-americana.
Questionado sobre a demora em colocar nas telas sua nova realização, Mickey 17, o simpático diretor de 55 anos disse ao jornal britânico The Guardian, durante o Festival de Berlim, em meados de fevereiro, que seus projetos são complicados de serem feitos e de serem vendidos. Atribuiu ainda à idade uma certa indisposição.
A frase desencadeou outra pergunta: ele não gostaria de seguir o modelo de colegas como Mike Leigh e Ken Loach, octogenários prolíficos? Ao ouvi-la, Bong se saiu com essa: “Eu gostaria de ser como eles, mas, sabe… já estou aqui só pensando na hora da soneca”.
Certamente, tocar uma superprodução de 120 milhões de dólares e lidar com as pressões de estúdio – no caso, a Warner Bros. – depois de ser campeão num Oscar histórico não é tarefa das mais simples a um profissional notadamente tranquilo como Bong Joon Ho.
O humor espirituoso, que se equilibra entre a graça pura e a perspicácia, sempre foi uma de suas características mais marcantes – no jeito de ser, mas também nas obras. Não é diferente em Mickey 17, em cartaz nos cinemas brasileiros desde a quinta-feira 6.
O filme é uma ficção científica que satiriza a exploração do trabalho ao mostrar o operário de uma grande corporação que, ao submeter-se a missões suicidas no espaço, é constantemente clonado numa espécie de máquina impressora gigante. Disposto a, literalmente, morrer pela empresa, ele é o funcionário perfeito. A organização, por sua vez, mantém o acordo de trazê-lo de volta numa versão idêntica em corpo e memória.
A trama tem como ponto de partida o romance Mickey7, de Edward Ashton, (lançado no Brasil pela Planeta Minotauro) e chega num momento em que a ficção audiovisual tem abordado, de forma direta, os malefícios e as contradições do excesso laboral, com as grandes empresas exigindo o máximo de disposição e disponibilidade dos funcionários, em detrimento da saúde mental e da qualidade de vida.
Exemplos recentes de ficções com esse tipo de preocupação são as séries Ruptura (AppleTV) e O Urso (Hulu). O próprio Bong Joon Ho tratou disso em O Expresso do Amanhã (2013), sua primeira incursão nos EUA.
A produção coloca em cena, de forma satírica, um empregado que, para poder, literalmente, se matar de trabalhar, é clonado
Mickey 17 pode também ser visto como a primeira grande produção americana a captar a nova ascensão de Donald Trump ao governo. Mesmo em desenvolvimento desde 2022, com estreia inicialmente prevista para 2024 e adiado por conta da greve dos atores e de desarranjos entre Bong e a Warner Bros., o longa-metragem estreia justamente num momento em que Trump toma ações muito similares às do patético e autoritário político e empresário Kenneth Marshall, vivido por Mark Ruffalo com o devido tom exagerado que o personagem pede.
As tensões de uma eventual guerra entre espécies – que remete a outra alegoria sci-fi, Tropas Estelares (1997), de Paul Verhoeven – são amplificadas pela intolerância de Marshall e pelo destrambelho de seu séquito.
Esse núcleo espelha também o comportamento do presidente russo, Vladimir Putin, na invasão da Ucrânia, iniciada justamente em 2022, quando o filme começou a ser pensado. Bong Joon Ho não nomeia ninguém, nem dentro nem fora do roteiro, e atribui a líderes autocráticos da Coreia do Sul parte da inspiração de seu antagonista. Até nisso ele consegue dialogar com o presente, vide a tentativa de golpe de Estado do presidente sul-coreano, Yoon Suk Yeol, em dezembro de 2024.
O espectador versado no trabalho do cineasta vai identificar rapidamente a atmosfera singular de Mickey 17. Há o humor corrosivo em momentos inesperados; as frases provocativas sobre o estado do mundo; o olhar sobre a pirâmide social; e as interpretações antinaturalistas que vão na contramão da tão apregoada verossimilhança.
Robert Pattinson, em especial, adere ao estilo peculiar do cineasta, fazendo de Mickey (ou Mickeys) um tipo esquisito, mas fácil de ser compreendido em suas fragilidades. Ele é alguém largado à margem que encontra uma possibilidade de sobrevivência num acordo cuja maior consequência é a irrestrita banalização de sua vida.
Quando um dos clones é fabricado por engano, Mickey experimenta, pela primeira vez, o princípio da finitude. Nesse momento, o roteiro trabalha questões existenciais sem, com isso, deixar de lado o tom de comédia nervosa e frenética imprimido desde os primeiros minutos. Pattinson acompanha o desafio, criando uma personalidade distinta e marcante para o Mickey 18.
O filme completa uma trilogia informal do diretor nos EUA, formada por O Expresso do Amanhã e Okja (2017). São três ficções científicas que fogem aos padrões ocidentais mais estabelecidos. As reflexões e estranhamentos desses trabalhos aproximam-se do estilo multifacetado das produções populares da Coreia do Sul. É esse diálogo que faz do cineasta um mestre em capturar o espírito do tempo a partir de abordagens excêntricas. •
Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Eu, eu mesmo e minhas cópias’