Quando o apresentador da cerimônia do Oscar soltou a piadinha sobre o enredo de “Ainda Estou Aqui”, dizendo que sua esposa tinha achado inspiradora a história de uma mulher que tem de cuidar da família após o marido desaparecer, a audiência brasileira, em clima de Copa do Mundo, levou um choque. No mínimo, o sujeito cometeu uma gafe, fruto de desinformação, mas o fato é que a coisa jogou um balde de água fria em quem estivesse esperando um grande reconhecimento das vítimas da ditadura militar brasileira, aliás patrocinada pelo Tio Sam, no tapete vermelho de Hollywood em meio ao fru-fru dos vestidos de grifes famosas.

Trata-se, por óbvio, de um episódio menor, mas poderia dar um choque de realidade nos brasileiros, principalmente na turma da esquerda pequeno-burguesa, que compra com facilidade certos engodos bem embalados pela direita que se pensa “civilizada”. Nada contra o filme, que tem seu valor e, de fato, traz à luz um momento sombrio da história recente do país.

O problema talvez esteja naquilo que é escamoteado no roteiro. O crítico de cinema Ismail Xavier chegou a comentar que o contexto político foi ocultado pelo diretor, que enfocou apenas a história da família. O que o filme mostra do período é que pessoas eram torturadas por questões políticas e podiam ser mortas e desaparecer, como se deu com Rubens Paiva. Criticam-se os métodos da ditadura, o que, obviamente, é positivo. Faltou, no entanto, mostrar qual era exatamente a luta política que se travava no momento, ou, em outras palavras, a quem servia a ditadura militar.

É importante lembrar que uma ditadura não surge do nada ou da cabeça de um Bolsonaro qualquer. O perigo está menos nos espantalhos de ocasião do que no conluio de uma burguesia organizada com as forças imperialismo, como tem ocorrido nos golpes de estado levados a termo. Basta lembrar o de 2016, que não teve DOI-Codi ou porões, porque os métodos, aparentemente, evoluíram.

Na base da nova metodologia de golpes está o Poder Judiciário, marcadamente o STF, que, cada vez mais, serve aos interesses políticos da burguesia. Os delitos de opinião, fruto de interpretações do tribunal, constituem espécie de institucionalização da censura, que agora aparece camuflada de “combate à desinformação e/ou às fake news”, quando não de “antissemitismo”, “racismo”, “homofobia”, “gordofobia” ou o que quer que sirva para impor controle sobre a circulação de informação. Tudo isso sob os aplausos da esquerda.

O filme também não alude à censura existente durante a ditadura, que foi um dos instrumentos de manutenção de poder. Hoje os velhos censores do regime militar, que editavam as matérias jornalísticas dentro das redações ou que impediam a exibição de shows musicais, são até ridicularizados. Mais uma vez, o que houve foi evolução dos métodos.

Enfim, vemos no filme basicamente a condenação dos métodos da ditadura, mas não um posicionamento sobre o conteúdo da luta política. O que defendia Rubens Paiva? Ficamos sabendo que sua família era feliz, com filhos e uma vida boa, que recebia muitos amigos em casa em suas reuniões festivas, que era gente bacana, intelectual e que foi tragicamente abalada pelos métodos da ditadura.

Não existe defesa de posicionamento político. É a história de uma mulher cujo marido desapareceu e que luta para seguir a vida e cuidar dos filhos. A foto da família sorridente, que tem sido elogiada como forma de “resistência” e associada à frase “Ainda estou aqui” dita por essa mulher já idosa e afetada pelo Alzheimer, sugere mais a ideia de “resiliência”, ou seja, de adaptação às circunstâncias adversas. A distinção entre “resistência”, como a do Hamas na Palestina, e “resiliência”, como a de quem aceita a adversidade e segue em frente, pode ser útil para entender a premiação do filme pela Academia de Cinema norte-americana.

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Last Update: 06/03/2025