Acervo de Inezita Barroso começa a ser organizado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP
por Mirela Costa
Por mais de três décadas, as manhãs de domingo dos espectadores brasileiros foram marcadas por encontros com a música caipira. Quem os conduzia era a cantora Inezita Barroso (1925-2015), apresentadora do programa Viola, Minha Viola, da TV Cultura, que trazia variados artistas para entoar cantorias e promover diálogos sobre aquele gênero musical. Profissional de múltiplas faces, Inezita Barroso consolidou uma obra para além da música do campo: ela também foi instrumentista, pesquisadora, atriz, bibliotecária e professora, tornando-se uma das principais referências femininas da música folclórica brasileira e da moda de viola.
Às vésperas do centenário da artista, nascida no dia 4 de março de 1925, em São Paulo, o acervo artístico e acadêmico de Inezita Barroso – transferido para o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP em 2023 – começa a ser organizado e catalogado. Entre diversas memórias da cantora, a coleção conta com 600 LPs, 300 partituras musicais impressas, 850 livros e mais de 3 mil fotografias, entre outros itens pessoais. Parte desse material já está disponível para consulta.
Esse patrimônio chegou à USP depois que a filha de Inezita, Marta Barroso, doou o acervo, em 2018, para os jornalistas Aloisio Milani e Alexandre Pavan, que trabalharam com a artista como roteiristas do programa Viola, Minha Viola. Milani e Pavan entraram em contato com o IEB e acertaram a transferência definitiva de todo o material para o instituto, o que ocorreu em 2023. “Nossa alegria é saber que hoje o acervo está bem cuidado e perto de outros acervos de personalidades importantes para Inezita”, comemora Milani, citando a coleção do escritor modernista Mário de Andrade – também guardada no IEB -, que, segundo o jornalista, era “um ídolo” para a cantora. “Com a coleção no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, garantimos o acesso à integralidade do acervo para fãs e pesquisadores.”
Milani destaca a raridade de vários itens do acervo de Inezita Barroso. “Com apoio do Instituto Itaú Cultural, fizemos o projeto No Gravador de Inezitae conseguimos digitalizar e catalogar 43 fitas de rolo com registros raros de Inezita”, exemplifica o jornalista. “Desde os dez anos de idade ela já organizava um compilado de fotos, notícias de jornal e anotações pessoais sobre a própria carreira.”

Os jornalistas Alexandre Pavan e Aloisio Milani, que trabalharam com Inezita Barroso como roteiristas do programa Viola, Minha Viola, da TV Cultura – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Acervo de Inezita Barroso conta com estojos metálicos com mais de 3.600 slides de fotografia – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Slide de fotografia de Inezita Barroso em aula de natação, em 1963 – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Cadernos pessoais e estojos com slides
Mônica Bento, supervisora técnica do Laboratório de Conservação e Restauro do IEB, destaca o cuidado de Inezita com seus objetos como fator fundamental para a preservação do acervo ao longo do tempo. “Além da extensa carreira musical, ela também foi uma excelente bibliotecária. Parece que já cuidava desse patrimônio para a posteridade”, afirma. Inezita se formou em 1946 na primeira turma do curso de Biblioteconomia da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP.
Em 26 cadernos pessoais, incluídos no acervo, Inezita documentou ano a ano sua trajetória por meio de cartões com dedicatórias, críticas musicais e fotos com amigos e artistas. Além das recordações, as competências de Inezita Barroso como bibliotecária se mostram em estojos metálicos de slides com mais de 3.600 fotos, todos catalogados e legendados.
A biblioteca da artista também é um dos destaques do acervo: pesquisadora de folclore e amante de literatura clássica, suas leituras contemplam desde livros sobre viola caipira até obras de Dante Alighieri e Jorge Amado.
As múltiplas influências de Inezita ficam evidentes, da mesma forma, em seu violão branco modelo Del Vecchio, outro item do acervo. “Por gostar muito desse violão, Inezita pedia para que alguns amigos e pessoas queridas assinassem seu tampo”, comenta Milani. O instrumento conta com assinaturas como as do ex-presidente do Brasil Juscelino Kubitschek (1902-1976), do cantor e compositor Luiz Gonzaga (1912-1989) e do ex-diretor do Viola, Minha Viola, Eduardo Moreira (1917-1998).
Item histórico também ressaltado por Milani é a cadeira reservada a Inezita no antigo restaurante Parreirinha, no bairro da República, região central de São Paulo. O local era frequentado por outros nomes relevantes da música brasileira, como Adoniran Barbosa e Martinho da Vila. A artista, assídua cliente do restaurante, ganhou um assento de veludo com seu nome bordado no encosto.



Em seu acervo, a cantora guardava um violão com assinaturas de amigos pessoais – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Personalidades como Juscelino Kubitschek e Luiz Gonzaga assinaram o violão da cantora – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Inezita Barroso recebeu o Troféu Roquette Pinto de Ouro em 1960, após ganhar seis vezes o prêmio de Melhor Cantora ao longo dos anos 1950 – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Nas memórias da artista
Ignez Magdalena Aranha de Lima – a Inezita Barroso – nasceu na Barra Funda, bairro da zona oeste da capital paulista. Sua veia artística manifestou-se desde cedo: aos 7 anos de idade, aprendeu a cantar e a tocar violão e aos 11 demonstrou interesse pelo piano. O apelido de infância que a acompanharia pelo resto de sua carreira, Inezita, foi dado por influência das origens espanholas de sua família materna. Embora fosse paulistana, tomou gosto pelo universo rural ao visitar as fazendas de café de seus tios no interior de São Paulo, onde entrou em contato com a viola caipira e conheceu o universo das músicas folclóricas.
Ao unir a paixão pela arte com suas habilidades como bibliotecária, ela realizou pesquisas, inquéritos e análises do folclore brasileiro em vários Estados do Brasil, o que foi essencial para sua atuação na música. Como cantora profissional, começou no início da década de 1950 durante um recital no Teatro Santa Isabel, em Recife (PE), apresentação que rendeu uma temporada contratada pela Rádio Clube do Recife.
Exibindo versatilidade desde o início de sua trajetória, Inezita Barroso transitou entre variados gêneros musicais, desde sertanejo raiz e música caipira até batuque e maracatu. Em 1953, gravou o samba Ronda, de Paulo Vanzolini, e a moda Marvada Pinga, de Ochelsis Laureano – dois de seus maiores sucessos. No ano seguinte, recebeu o Prêmio Roquette Pinto como melhor cantora de rádio da música popular brasileira, e o Prêmio Guarani como melhor cantora de disco. Em seguida, passou a apresentar na TV Record Vamos Falar de Brasil, primeiro programa da televisão brasileira inteiramente dedicado à música.
Como atriz, teve papéis nos filmes Ângela (1950), O Craque (1953), Destino em Apuros (1953), É Proibido Beijar (1954) e Carnaval em Lá Maior (1955). Pela atuação no longa Mulher de Verdade (1953), recebeu o Prêmio Saci, um dos mais prestigiados do cinema brasileiro na época. Mas Inezita não deixava de trabalhar no universo musical e emplacar discos, como Canta Inezita (1955), Eu me Agarro na Viola (1960) e Clássicos da Música Caipira I (1969). Na década de 1970, dedicou-se a viajar para pesquisar música, além de realizar recitais pelo interior do País e fazer gravações para programas especiais para diversos países, entre eles a então União Soviética, Israel e Estados Unidos.
“Apesar do sucesso, a ascensão da bossa nova e da jovem guarda fez o estilo musical de Inezita ficar um pouco fora de moda nos anos 1970. Foi então que ela se reinventou e foi convidada a apresentar o Viola, Minha Viola, consolidando o gênero caipira nas últimas décadas”, explica Milani. De volta às telas em 1980, desta vez nas manhãs de domingo da TV Cultura, Inezita passou a levar a tradição folclórica aos lares brasileiros por meio do programa. Ela permaneceu no comando da apresentação até 2015, ano de sua morte.
Entre 1987 e 1996, Inezita apresentou na Rádio USP o programa semanal Mutirão, em que promovia a música caipira. Ela foi professora de Folclore Brasileiro e História da Música Popular Brasileira em três instituições de ensino superior: a Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), o Centro Universitário Assunção (Unifai), em São Paulo, onde recebeu o título de Professora Emérita em 2005, e o Centro Universitário Capital (Unicapital), também em São Paulo, onde foi nomeada Doutora Honoris Causa, naquele mesmo ano. Foram mais de 60 anos de carreira profissional, dedicados ao rádio, cinema, teatro e televisão.
Mais informações sobre o acervo de Inezita Barroso podem ser obtidas no Laboratório de Conservação e Restauro do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP (Avenida Professor Luciano Gualberto, 78, Cidade Universitária, em São Paulo), telefone 11 2648-1663, com a supervisora técnica Mônica Bento.

Entre LPs, 78 rpm e compactos, há mais de 800 discos na discoteca e na discografia pessoal da cantora – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Inezita Barroso ao lado de Luiz Gonzaga – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Inezita Barroso ao lado de sua filha, Marta Barroso – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Caderno com anotações de Inezita Barroso – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Inezita Barroso organizou, em vida, uma série de cadernos com fotos, anotações e notícias de jornal sobre sua carreira – Foto: Marcos Santos/USP Imagens