Fernanda Torres recebe o Globo de Ouro

Quando as indicações ao Oscar foram anunciadas, a surpreendente força de “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles — com indicações para Fernanda Torres como Melhor Atriz, Melhor Filme Internacional e, a mais inesperada de todas, Melhor Filme — gerou celebrações no Brasil. “Estou muito orgulhoso! Beijos para Fernanda Torres e Walter Salles”, publicou o presidente Lula no X.

Emocionalmente poderoso e eloquente, o filme narra a história de uma família que viveu sob a ditadura militar, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva. Em 1971, o ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello) foi levado pela polícia militar e nunca mais foi visto. Sua esposa, Eunice Paiva (Fernanda Torres), precisou reconstruir sua vida e criar seus cinco filhos sozinha. Nos anos seguintes, enquanto Eunice retomava seus estudos e se tornava uma advogada proeminente de direitos humanos, ela jamais desistiu de buscar a verdade sobre o destino de seu marido e responsabilizar o Estado pelo ocorrido.

No dia do anúncio das indicações, 23 de janeiro, o filme e a realidade se cruzaram novamente. O atestado de óbito de Paiva, que o declarava desaparecido, foi alterado para refletir a realidade: sua morte foi “violenta, causada pelo Estado brasileiro”.

Mais do que um azarão no Oscar, “Ainda Estou Aqui” se posiciona como favorito na categoria de Melhor Filme Internacional, e Fernanda Torres tem chances reais de desbancar a favorita Demi Moore na disputa de Melhor Atriz. O sucesso do filme é fruto de uma combinação alquímica entre o pessoal, o político e o artístico. Poucas obras retrataram de maneira tão íntima, visceral e oportuna os efeitos devastadores da política na vida dos indivíduos, chegando num momento em que o crescimento do autoritarismo preocupa o mundo todo.

Embora o filme trate explicitamente da ditadura brasileira, ele também tocou audiências ao redor do mundo. Seu desempenho nas bilheteiras globais impressiona para um filme de baixo orçamento: arrecadou mais de US$ 25 milhões, incluindo US$ 3 milhões apenas no primeiro mês nos EUA, onde continua em cartaz.

A trajetória de premiações do filme foi impulsionada por seu impacto no Brasil. O governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro esteve no poder de 2019 a 2023. Quando perdeu a eleição de 2022, seus apoiadores invadiram e depredaram a Praça dos Três Poderes. Bolsonaro foi denunciado pela PGR por planejar um golpe.

O próprio Salles conheceu a família Paiva pessoalmente na adolescência, no Rio de Janeiro. “Fui convidado para entrar naquela casa, para conhecer a intimidade daquela família. Fiquei encantado”, conta. Recriar essa atmosfera foi uma forma de acolher os espectadores no filme. Mesmo cientes do perigo ao seu redor, os personagens são mostrados vivendo momentos de alegria, compartilhando jantares e passeios na praia. “Isso aumenta ainda mais o impacto do que acontece depois”, explica o diretor.

Eunice e Rubens Paiva foram retratados no filme “Ainda Estou Aqui”. Foto: reprodução

Walter Salles já havia sido indicado ao Oscar por “Central do Brasil” (1998), que também rendeu uma indicação de Melhor Atriz para Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres. A produção de “Ainda Estou Aqui” levou sete anos, em parte porque “havia tantas camadas de memória envolvidas que eu queria ser fiel a todas elas”, diz o diretor.

A produção enfrentou desafios políticos. “Seria impensável filmar isso durante o governo Bolsonaro”, diz Salles. “Não teríamos permissão para filmar em espaços públicos. Basicamente, poderíamos filmar os interiores, mas não os exteriores. Isso certamente acrescentou três ou quatro anos ao desenvolvimento.”

Eunice Paiva, a personagem central, é descrita por Salles como “uma mulher que recusava o melodrama”. Fernanda Torres transmite essa força e contida dor de forma magistral. Quando Rubens é levado pela polícia, dirigindo seu próprio carro como se fosse a uma reunião amigável, Eunice lhe oferece um leve sorriso de despedida. Mas por baixo dessa fachada, vemos a imensidão de sua dor.

A busca de Eunice por justiça durou décadas. Apenas em 1996 ela conseguiu um atestado de óbito para Rubens, que inicialmente dizia apenas “desaparecido”. No filme, ela mostra esse documento aos jornalistas e diz: “Os desaparecimentos forçados foram um dos atos mais cruéis do regime, porque você mata uma pessoa, mas condena todos os outros a uma tortura psicológica eterna.”

Nem mesmo Salles poderia prever o quão oportuno o filme se tornaria. “Já sabíamos que a fragilidade da democracia não era uma questão apenas do Brasil, mas de muitos países”, diz. “Uma das primeiras coisas que autoritários fazem é tentar apagar a memória e reescrever a história.”

Preservar essa memória, tanto pessoal quanto política, é o coração de “Ainda Estou Aqui”. “O filme ecoou tão fortemente porque o público viu na tela um reflexo de si mesmo e acessou uma parte da história brasileira esquecida por tempo demais”, conclui Salles.

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Last Update: 02/03/2025