O Brasil se tornou o principal mercado da Uber no mundo, tanto em número de viagens quanto em quantidade de motoristas cadastrados. De acordo com o CEO da empresa, Dara Khosrowshahi, o País abriga seis das dez cidades mais movimentadas em termos de corridas, com 1,4 milhão de motoristas atuando na plataforma e possibilidade de enorme crescimento com motoqueiros.
Em evento do BTG Pactual, o executivo destacou que, nos últimos dez anos, esses trabalhadores ganharam cerca de US$ 25 bilhões pela plataforma. “O Brasil é um mercado incrível, com motoristas ‘famintos’ por oportunidades”, disse Khosrowshahi, sem mencionar os desafios trabalhistas.
Khosrowshahi também comentou sobre estratégias para baratear o custo das viagens, incluindo a ampliação do serviço de moto-táxi, que já opera em algumas cidades brasileiras. Outra aposta da empresa é a contratação de engenheiros mais baratos fora dos Estados Unidos, com o Brasil como um dos polos de crescimento nessa área. Além disso, a Uber planeja expandir sua atuação no e-commerce, buscando competir com a Amazon na entrega de produtos de supermercados, farmácias e pet shops.
Flexibilidade aparente, jornadas exaustivas
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Contudo, a realidade dos trabalhadores da plataforma contrasta com o otimismo do CEO. O sociólogo e pesquisador Ricardo Antunes alerta para as contradições desse modelo de trabalho. Segundo ele, a Uber atrai motoristas principalmente por oferecer uma flexibilidade aparente. Embora os trabalhadores possam escolher seus horários, acabam submetidos a jornadas extensas para garantir um salário básico.
Para o professor e autor de estudos sobre precarização do trabalho, os números da Uber escondem uma realidade perversa.
“Os trabalhadores buscam a Uber porque ela apresenta uma flexibilidade de horário que é em parte real e em parte muito aparente. É real na medida em que podem decidir não trabalhar em determinados dias, para levar um filho no medico, mas acabam tendo que compensar depois com jornadas superiores extenuantes e longas”, explica Antunes. “A flexibilidade é uma ilusão. Você é escravo do algoritmo, que dita seu salário e pode te excluir sem explicação”, resume Antunes.
O trabalho formal precarizado
Motoristas precisam trabalhar “como loucos” (com jornadas de até 14 horas por dia) para atingir R$ 5 mil/mês (líquidos aparentes), sem contabilizar custos como gasolina, manutenção e saúde. Isso se dá porque os salários de trabalhadores qualificados no Brasil são baixos e arrochados. Antunes diz que quando pergunta por que engenheiros não voltam para seu emprego antigo, mencionam os baixos salários.
“Uma vez eu pesquisei com um engenheiro tecnológico industrial, e ele disse que o trabalho dele pagava R$ 3.500 de salário e que ele precisava de pelo menos R$ 5 mil por mês livres, porque ele tinha um problema de saúde da família, que exigia cuidados especiais”, relata.
O professor criticou as perdas salariais dos últimos anos. Ele diz que o presidente Lula se celebrizou justamente por grandes greves contra o arrocho salarial dos anos 1970, que vigoram com perversidade atualmente. “O vilipêndio, que é o nosso salário mínimo hoje, quando o Dieese diz que deveria ser cinco vezes superior ao que é”, critica.
Quando chega a doença e a insegurança
Outro ponto levantado pelo pesquisador é a falta de segurança financeira e trabalhista dos motoristas. Muitos ingressam no setor por não conseguirem salários adequados em outras ocupações, o que os obriga a aceitar longas jornadas para atingir um rendimento que consideram suficiente. Além disso, os custos operacionais – como manutenção do veículo, combustível e alimentação – não são plenamente contabilizados pelos trabalhadores, levando a uma ilusão de salário maior do que realmente obtêm.
“A maioria não contabiliza os custos quando o carro quebra, os pequenos gastos com limpeza ou manutenção. O resultado é que, para ter um salário razoável, precisam trabalhar intensamente. E, quando adoecem, percebem que não há nenhum suporte real da empresa”, acrescenta Antunes.
O sociólogo criticou os bloqueios arbitrários, em que as plataformas suspendem motoristas por recusar corridas ou adoecer. “Fiquei 10 dias com Covid e o seguro da Uber não cobriu nem os remédios”, relatou um trabalhador ao pesquisador.
A opacidade do algoritmo
O pesquisador também critica a ausência de direitos trabalhistas e a dependência dos motoristas dos algoritmos da plataforma, que determinam a distribuição das corridas e podem penalizar aqueles que não atendem a todas as chamadas ou simplesmente “cancelá-los” (demití-los). Segundo ele, é fundamental garantir transparência no funcionamento desses sistemas e a criação de mecanismos que assegurem melhores condições de trabalho aos motoristas.
“Uma das bandeiras — além dos direitos do trabalho, além da flexibilidade, porque é possível ter direitos do trabalho com flexibilidade e horário, como portuários, como enfermeiros e médicos, por exemplo –, é preciso ter também o controle do funcionamento dos algoritmos. Como fiscalizar exploração se nem sabemos como os algoritmos calculam ganhos, tempo, jornada, etc?”, questiona. Ele cita casos como o da 99, que bloqueia motoristas por cinco dias se recusarem chamados.
“O trabalho nas plataformas começa com uma fase de lua de mel, mas logo os trabalhadores percebem que estão sujeitos a regras rígidas e exploração intensa. Além dos direitos trabalhistas, é preciso regulamentar o funcionamento dos algoritmos para que os trabalhadores não fiquem à mercê de decisões automatizadas que impactam diretamente sua renda e condições de vida”, conclui Antunes. Ele afirma que a própria justiça trabalhista deveria ter acesso ao funcionamento dos algoritmos para fiscalizá-los e verificar se respeitam os direitos dos trabalhadores.
O debate sobre a regulamentação do trabalho por aplicativos continua em aberto no Brasil. Enquanto a Uber comemora seu crescimento exponencial no país, motoristas seguem enfrentando desafios diários para garantir sua subsistência em um modelo de trabalho que, para muitos, se mostra insustentável no longo prazo.