A normalização do absurdo
por Francisco Silva
Quando em 2015 foi lançado o livro Submissão do escritor Michel Houellebecq (68) foi grande o escândalo causado pela heresia do autor ao apresentar em sua trama uma França de 2022 aturdida com a chegada ao poder de um político carismático para governar o país.
A distópica ficção de Houellebecq narra a vitória eleitoral de um partido em disputa com a direita tradicional e a ascensão de um político que, por trás de um discurso contemporizador, carregava um programa capaz de produzir o aniquilamento dos mais caros valores cultivados pela cultura francesa.
Submissão teve seu lançamento em Paris poucas horas depois do sangrento atentado jihadista ao jornal Charlie Hebdo, em 7 de janeiro de 2015, que causou a morte de doze pessoas, entre elas, oito jornalistas.
No livro, a conduta do protagonista François, um professor de 44 anos, cético com o sistema político tradicional, se confunde com as ideias do próprio autor, visto como um provocador reacionário, racista, xenófobo e misógino.
Na ficção de Houellebecq e no imaginário de milhões de franceses em 2015 – e ainda hoje – a maior ameaça à França era o Islã, corporificada nos imigrantes e seus descendentes irradiando contradições demográficas e culturais. Do livro é possível extrair uma crítica à apatia da cultura e ao ensimesmamento de partidos e lideranças políticas incapazes de compreender as novas demandas da sociedade e dar-lhes respostas satisfatórias.
A extrema direita vitoriosa
Hoje, 1 de julho de 2024, aquilo que era tido como impensável há trinta anos para a maioria dos franceses e o resto do mundo, deu um passo largo para se tornar realidade. Apurados os votos de ontem (30/06) a Frente Nacional do extremista Jean-Marie Le Pen rebatizada de Reunião Nacional (RN) pela sua filha Marine Le Pen saiu vencedora em eleições legislativas antecipadas, convocadas pelo Presidente Emmanuel Macron, após dissolução da Assembleia Nacional em arriscadíssimo movimento político frente a vitória da extrema direita na eleição para o Parlamento Europeu no último 9 de junho.
Com a mais alta taxa de participação em primeiro turno desde as eleições legislativas de 1978, os franceses demonstraram compreensão da importância desse pleito para o futuro do país, seja o que for que isso signifique para cada um deles.
A RN alcançou a liderança com 33%, o NFP com 28% e o campo de Macron na terceira posição com 21%. Na quarta posição ficou os Republicanos com 10% dos votos.
Imagem suavizada
A estratégia de Marine Le Pen de renovar a imagem do partido fundado por seu pai nos anos 1970 e que por muito tempo foi rejeitado por seu extremismo, visto como uma ameaça para a democracia, foi fortalecida com a ascensão no partido de Jordan Bardella, jovem de 28 anos que em 2019 assumiu o posto de deputado no Parlamento Europeu e em 2022 se tornou presidente do partido de extrema direita.
A professora Cécile Alduy, pesquisadora da Universidade de Stanford e especialista no partido de Le Pen avaliou que Bardella “é uma figura da extrema direita pronta para revistas, tudo limpo e arrumado, sorriso branco… Articulado para renovar a imagem do partido – suavizando as coisas para que pareçam banais, normais e convencionais. […] Os pilares do discurso, no entanto, são os mesmos de Jean-Marie e Marine Le Pen, a tríade em torno de imigração, identidade e islamismo. A diferença só é o tom e o estilo”.
Diversos analistas convergem na avaliação de que o grande problema da institucionalização da extrema direita e da sua ascensão ao poder político, é que ela legitima a ação de grupos violentos que passam a dizer para si mesmos ‘somos o primeiro partido na França, as pessoas querem que façamos isso’.
Nas redes sociais
Essa normalização das ideias de extrema-direita está massivamente presente nas redes sociais, onde por sinal, Jordan Bardella tem milhares de seguidores, especialmente no TikTok e Youtube.
Essa estratégia de comunicação tem se mostrado eficiente na produção de uma narrativa sobre os problemas da sociedade francesa e as propostas do RN para solucioná-los. O que se observa na França é que um universo cada vez maior de pessoas, de diferentes grupos sociais, com destaque aos jovens, tem aderido a essa leitura da realidade.
O estrangeiro
Na busca de exibição de uma imagem diferente do radicalismo que lhe é imputado, Bardella não pareceu ver contradição – ou foi um deboche, um sarcasmo deliberado – ao informar que seu livro de cabeceira é “O estrangeiro”, de Albert Camus. O filósofo argelino, Nobel de Literatura de 1957, é uma referência no pensamento crítico ao colonialismo e ao racismo. Conhecido como o filósofo do absurdo, propôs a revolta como única resposta aceitável diante do absurdo.
Uma estranha apropriação
Um blogger francês escreveu que ao dar essa declaração sobre seu livro de cabeceira ser “O estrangeiro”, Bardella quis divertir seus seguidores de TikTok que costumam organizar festas “Fora estrangeiros!”. Ou talvez tenha uma distorcida compreensão do sentido dado pelo autor ao episódio em que o protagonista da trama, Mersault, mata um árabe.
O blogger por fim indaga sobre a importância de conhecer “a profundidade psicológica de uma máquina lepenista que quer destruir a França”.
Proibido aos cães e aos italianos
Durante um debate televisivo, Bardella, que é de família de imigrantes italianos, foi questionado quanto ao sentido de sua fidelidade ao radical discurso anti-imigração do partido que preside, sendo lembrado da mensagem do belo e premiado filme de animação “Proibido aos cães e aos italianos” (Interdit aux chiens et aux Italiens) do diretor francês Alain Ughetto, neto de italianos do Piemonte, cuja trama evoca realidades dolorosas vividas por imigrantes italianos que tentaram a sorte na França no início do século XX.
O jovem político, treinado na arte da dissimulação, se sai bem na tergiversação e falas evasivas, sem qualquer profundidade.
Apelo
Logo após o anúncio dos resultados do primeiro turno das eleições legislativas, o presidente Emmanuel Macron lançou um apelo a todos os franceses para uma grande manifestação em prol da República e da democracia. Aos candidatos dos partidos contrários à extrema-direita que estarão no segundo turno, no domingo próximo, Macron conclamou que orientem suas ações em favor dos valores cruciais para a República.
É justo frisar que, sobre a RN não pesa só os elementos que constituem seu discurso, mas também a atuação de seus representantes no Parlamento, que não deixam dúvidas sobre seu caráter antissocial, antiecológico, antifeminista e perigosamente ambíguo em temas cruciais como a guerra entre Rússia e Ucrânia, não conseguindo esconder sua admiração por Vladimir Putin e relações pouco republicanas com financiadores russos.
Se na ficção distópica de Houellebecq o colapso da democracia francesa viria com a chegada ao poder de um adepto do Islã, do estrangeiro, do Outro, o que essa eleição está mostrando é que o temido colapso pode vir justamente do radicalismo de uma França que insiste em procurar sua imagem olhando só para o espelho, limitado pela sua rígida moldura.
Francisco Silva, sociólogo e cientista político (PUC-SP), escritor e professor universitário.
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