Memórias, memórias, memórias… (I)
por Izaías Almada
ANO DE 1973
Era a primeira vez que Pedro saía do Brasil. Destino: Portugal. Tudo aconteceu em poucas semanas e Pedro juntou o desejo de começar uma nova vida com a oportunidade de deixar um país que lhe fizera marcas profundas na alma e no corpo.
Ainda sentia ganas de lutar contra os militares que estavam no poder, mas já não valia à pena. Milhares de companheiros presos, centenas deles mortos ou exilados, banidos, sem perspectivas de uma vida legal no país. Quem sabe encontraria alguns deles na Europa? Esperava que as novas gerações continuassem a luta…
Portugal poderia fazer esta reaproximação e o que contava naquele momento, finalmente, era a oportunidade de conhecer Paris, Londres, Lisboa, os cenários de Eça, Sartre e até os de Agatha Christie, autora de grandes livros policiais, por que não? Era sua escritora predileta em muitos momentos de alívio e relaxamento da angústia e desespero na prisão enquanto não sabia por quanto tempo ali permaneceria.
Agora a Europa estava ali à sua frente, era pegar ou largar. O avião da Varig correu a pista com suavidade e subiu com a elegância própria da sua aerodinâmica em direção ao velho continente.
O coração de Pedro batia menos pelo voo em si, pois vários já realizara dentro do país, e mais pela perspectiva de começar a transformar em realidade um sonho de adolescente.
O destino inicial era Lisboa, mas Paris e Londres fixavam-se como velhas fotografias perdidas no baú da sua memória imaginária. Impossível não recordar as primeiras leituras de Sartre, os “Caminhos da Liberdade”, “Muro” e ainda “O Nosso Homem em Havana” do inglês Graham Greene, oferecido de presente por sua primeira namorada, Vera Alice Cardoso, devorados enquanto curava uma crise de rubéola na adolescência.
A oportunidade da viagem surgiu quando a atriz e empresária teatral Ruth Escobar, portuguesa de nascimento, procurava formar um elenco para retomar e ensaiar a peça “Cemitério de Automóveis” do espanhol Fernando Arrabal.
Pedro, já com boa experiência em teatro profissional desde os anos de 1965, foi um dos escolhidos e com imensa alegria e o coração batendo pela oportunidade surgida, preparou-se para enfrentar uma situação inteiramente inesperada na sua vida: esquecer as marcas psicológicas deixadas pela prisão, fazer uma peça mundialmente aclamada e conhecer a Europa.
Lembrava-se perfeitamente de ouvir o telefonema de Ruth Escobar ao delegado Celso Telles, do Deops, um dos policias que participou da sua prisão em 1969, pedindo-lhe que autorizasse a viagem de Pedro em sua companhia para apresentar um espetáculo teatral em Portugal, terra natal da atriz.
“Celsinho, meu querido, eu preciso que ele viaje comigo. Fico te devendo essa”… No dia seguinte Pedro já tinha o passaporte em mãos.
A direção do espetáculo seria do mesmo realizador que veio ao Brasil e montou a peça em São Paulo, o argentino Victor Garcia e que vivia em Paris.
O avião da Varig pousou no Aeroporto de Portela em Lisboa numa agradável manhã de julho, em pleno verão europeu.
A casa escolhida por Ruth Escobar para moradia dos seus atores e atrizes era confortável e ficava no município de Cascais um agradável e belo ponto turístico próximo a Lisboa.
O grupo foi de táxi do aeroporto para Cascais seguindo por uma avenida à beira-mar e tão logo puderam definir os quartos em que cada um ficaria, pois se tratava de um casarão de dois andares e um sótão, Pedro ajeitou-se para dormir e aliviar o cansaço pela viagem de dez horas sobre o Atlântico., tomando o cuidado de acertar o seu relógio de pulso pelo novo fuso horário.
Acordou horas depois de boa soneca e olhou o relógio que já marcava as 20:05 hs. Olhou pela janela e viu ainda a luz amarelada do sol entrando pelo quarto, surpreendendo-se com a claridade àquela hora. Óbvio, pensou, no verão do hemisfério norte o sol se punha mais tarde e os dias pareciam que eram mais longos.
Ficou maravilhado com aquele pormenor na sua qualidade de marinheiro de primeira viagem para fora do Brasil. Semanas mais tarde viveria a mesma experiência em Londres, vendo o sol se por entre às 21hs e 21,15 hs.
Num terreno baldio de Cascais foi montado o circo que recebeu por dois meses a temporada de “Cemitério de Automóveis”.
O público português amou o espetáculo e Ruth Escobar resolveu fazer um documentário sobre a apresentação da peça em sua terra natal. E nesse documentário, tive a honra de fazer uma entrevista com Fernando Arrabal, autor da peça e de outros sucessos como “Fando e Lis” e “O Arquiteto e o Imperador da Assíria”.
(CONTINUA)
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.