A COP não é a Copa, mas isso não quer dizer muita coisa

O ano era 2009. Belém vivia uma grande expectativa em se tornar a sede amazônica da Copa do Mundo de 2014, revivendo uma longeva rivalidade com Manaus. Como sabemos, Belém não seria escolhida pela FIFA, desapontando um público esperançoso que assistia à cerimônia em telões instalados em diversos pontos da cidade e antecipando, para os belenenses, o gosto amargo do 7 a 1. Saltemos para o ano 2023. Belém foi escolhida como sede brasileira da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. A COP-30, ou simplesmente a “COP da Floresta” prevê um contraponto ao clima de deserto que tem caracterizado as últimas COP’s, cujos resultados têm se mostrado insuficientes para reverter o cenário catastrófico de mudança climática que estamos enfrentando.

Como qualquer outro megaevento no capitalismo contemporâneo, tanto as COP’s quanto as Copas seguem um receituário semelhante, o de dar esperança para governos locais que ainda acreditam ser possível sanear as finanças públicas transformando a cidade em um polo de atração de investimentos externos, prometidos para antes e, principalmente, para depois do megaevento. A história está aí para mostrar que os casos de sucesso são mais exceções do que a regra dessa receita.

O fato é que COP não é Copa e, sim, isso não quer dizer muita coisa, pois, no fundo, seguimos presos na arapuca da Cidade do Pensamento Único. Sob a bandeira da COP-30, a população de Belém foi submetida a um clima de “vale tudo” urbanístico, que tomou conta da vida cotidiana da cidade e contaminou a agenda política. Tudo é pela COP-30, pouco é pela cidade e o direito de habitar dignamente nela.

Como uma boa empresa, o marketing urbano de Belém começa pela vitrine. No caso da Belém da COP-30, a vitrine é a paisagem amazônica da baía do Guajará, emoldurada por antigos galpões portuários que estão sendo freneticamente convertidos em espaços culturais para expor a cultura amazônica para o mundo. Outra parte dos galpões foi cedida para a iniciativa privada e deve se tornar o primeiro resort cinco estrelas da cidade, sob a bandeira da rede Vila Galé. Mas esses não são os únicos imóveis públicos cedidos para o setor hoteleiro global. O segundo hotel de bandeira internacional, também cinco estrelas e de frente para a baía, deve ocupar o prédio de 15 pavimentos da antiga sede da Receita Federal de Belém. O prédio foi consumido por um incêndio em 2012 e, desde então, ficou abandonado. Por algum tempo se aventou a sua conversão em habitação de interesse social, o que nunca aconteceu.

A blue zone e a green zone da COP-30 estão sendo construídas no Parque da Cidade, antigo aeroporto de voos regionais administrado pela INFRAERO, convertido em um complexo de eventos para abrigar as duas semanas do megaevento. O parque será apenas um pouco menor que o Parque do Ibirapuera em São Paulo e se tornará um dos mais importantes equipamentos públicos do estado, exercendo forte pressão sobre a verticalização da sua área de entorno, que é prioritariamente formada por grandes maciços vegetais sob tutela das Forças Armadas.

Somado a isso, a previsão de atrair quase 100 mil pessoas durante o evento, num contexto de rede hoteleira insuficiente, atingiu em cheio as expectativas de ganho fácil com o aluguel por temporada. Ficaram famosos na cidade os anúncios de quartos de hotel e apartamentos custando mais de R$ 1 milhão durante o período do evento. E ainda nem sequer estamos tratando da expansão da oferta de imóveis na plataforma AirBnb que, recentemente, assinou um acordo de cooperação com o governo do estado para ampliar sua participação em Belém.

É claro que não precisamos dizer que nem a conversão dos galpões em resort de luxo, tampouco a conversão do edifício da Receita em hotel cinco estrelas, ou mesmo o Parque da Cidade estão absolutamente condizentes com o que preconiza o atual plano diretor do município em suas diretrizes e parâmetros de uso e ocupação do solo. A narrativa de desenvolvimento da COP-30 cria as exceções que justificam o fim da regra – ou seria a exceção assumindo de vez a regra do jogo urbanístico em Belém?

Na Cidade do Pensamento Único, às vésperas do evento que pretende salvar a humanidade dela mesma, abrir exceções se torna regra e o respeito ao planejamento democrático vira a exceção. Assim, e faltando pouco mais de oito meses para o início da COP-30, o que estamos assistindo é o fortalecimento de uma narrativa de desenvolvimento urbano que dependerá prioritariamente da construção de exceções e da abertura de brechas nas instituições de planejamento vigentes, cujas capacidades de controle e regulação urbanística são historicamente muito frágeis em Belém.

A nova narrativa de desenvolvimento urbano, que se desenha a cada dia, possui uma forte tendência de desequilibrar a correlação de forças que mantém vivas algumas conquistas do período inicial da Nova República, como a preservação do centro histórico e a definição de Zonas Especiais de Interesse Social, especialmente ao longo da região de orla da cidade. Tudo indica que a prefeitura, o poder legislativo municipal e o setor privado vão orientar seus esforços para acomodar investimentos na formação de novas frentes imobiliárias no entorno da região portuária construída para ser vitrine da COP-30. O impacto sobre o patrimônio histórico da cidade e as populações mais vulneráveis que habitam essas regiões ainda não é possível estimar.

Ao fim e ao cabo fica a pergunta: qual será o real legado da COP da Floresta para a capital da Amazônia? É tenebroso pensar que o legado mais imediato seja um possível fim do planejamento urbano como espaço democrático, em nome da necessidade de acomodar os quase R$ 4 bilhões de investimento em infraestrutura urbana realizados pelo setor público, somado a um valor, que não conhecemos na totalidade, dos investimentos mobilizados pelo setor privado na expansão dos negócios ligados ao setor de turismo. Apesar de tudo indicar que tempos mais nebulosos se aproximam e que a capacidade de mobilizar uma agenda de Reforma Urbana para Belém se torna cada vez mais distante, penso que é melhor ter a sabedoria dos Sertões de Guimarães Rosa e entender que “não convém a gente levantar escândalo de começo”.

É preciso acreditar que a disputa desse legado segue aberta e o futuro que queremos para Belém depende de uma forma de mobilização social capaz de ocupar os espaços urbanos e retomar a cidade como espaço de vida, não como espaço para negócios. No dia 17 de fevereiro de 2025, as populações indígenas que ocupavam a Secretaria de Educação do Estado do Pará (Seduc) encerraram suas atividades com uma vitória importante: a revogação da Lei 10.820, que ameaçava o ensino presencial em comunidades indígenas. Talvez precisemos entender que mobilizar e ocupar não são coisas distintas, pois se trata de um binômio ligado umbilicalmente, especialmente no contexto urbano e metropolitano. Mobilizar-ocupar o espaço público deveria definir a nossa forma de viver na Belém da COP-30, inclusive de viver naqueles espaços que (re)nasceram para ser vitrine do evento. Seria esse um bom legado? Penso que sim.

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