Do ponto de vista militar, a verdadeira ameaça aos Estados Unidos é a China. Por isso, Donald Trump tem pressa em buscar acordos com a Rússia e encerrar logo o conflito na Ucrânia. O presidente norte-americano precisa dessa guinada, mesmo que ela implique contradizer e fragilizar seus parceiros europeus. Essa é a interpretação de Wojciech Lorenz para as mudanças profundas pelas quais a aliança transatlântica atravessa. O coordenador do Programa de Segurança Internacional do Instituto Polonês de Relações Exteriores, de Varsóvia, analisa, na entrevista a seguir, a reconstrução da capacidade militar da União Europeia, incluído o debate sobre o incremento de seu poder nuclear, diante do risco de um afastamento de Washington. “Será custoso, mas possível”, afirma.
CartaCapital: Qual a situação da Otan com a volta de Trump ao poder?
Wojciech Lorenz: Os EUA estão determinados a acabar com a guerra na Ucrânia rapidamente. Resta saber se farão isso protegendo os interesses fundamentais de segurança da Europa, incluindo a própria Ucrânia. A maneira como eles negociam com a Rússia até aqui nos preocupa porque se Trump forçar um tipo de acordo que seja inescapável para a Ucrânia e prejudicial para a segurança da Europa, e ao mesmo tempo tomar a decisão de limitar o envolvimento dos EUA na Otan, podemos estar diante de um abalo fundamental do nosso vínculo transatlântico. Não é nenhuma surpresa que os EUA queiram concentrar-se mais na China, em detrimento da segurança europeia. Sempre soubemos que isso aconteceria, mas alguns de nós não levaram isso suficientemente a sério.
CC: Como os países europeus reagem ao fato de não terem sido convidados a participar das negociações em Riad para acabar com a guerra na Ucrânia?
WL: Foi um sinal claro de que a Europa não é tratada como parceira porque seu poder e influência são muito limitados. Agora, o fato de isso ter chocado os europeus também pode ser uma coisa boa, pois vários países não tiveram até aqui determinação suficiente para fortalecer rapidamente seu próprio poderio militar. Então, esse choque cria a oportunidade para o chamado pilar europeu da Otan se fortalecer.
“Não é surpresa que os EUA queiram concentrar-se mais na China, em detrimento da segurança da Europa”
CC: Trump está trocando os antigos aliados europeus pela Rússia?
WL: Ainda é cedo para dizer. Os EUA fizeram muitas concessões à Rússia antes mesmo do início das negociações. Por um lado, pode ser uma tentativa de criar uma base para o envolvimento da ONU na Ucrânia, o que seria mais aceitável para a Rússia do que alguma forma de presença militar ocidental. Por outro lado, há o risco de que alguns integrantes do novo governo norte-americano acreditem ingenuamente que, por meio de uma redefinição maior das relações com a Rússia, os EUA serão capazes de afastar Moscou da cooperação com a China. Se os norte-americanos estiverem de fato tentando isso à custa dos interesses de segurança europeus, então poderíamos dizer que eles trocaram aliados europeus pela Rússia. Mas ainda não chegamos lá.
CC: A Polônia é um dos países que não cumpriam o compromisso da Otan de investir ao menos 2% do PIB em defesa. Após as críticas de Trump, essa porcentagem saltou para 4,12%. É um reflexo positivo da pressão?
WL: A Polônia adotou em 2001 uma lei que obrigava o país a gastar em defesa ao menos 1,95% do PIB. Mesmo que tenham havido anos como 2008, quando esse porcentual não foi atingido, nas últimas duas décadas a média foi de 2%. Neste ano é mais de 4% e no próximo gastaremos cerca de 5%. Isso não é resultado da pressão política de Trump. Apenas demonstra que a Polônia leva a sério o risco de uma agressão russa. Por outro lado, a Espanha, uma das maiores economias europeias, gasta apenas 1,3% em defesa. A Itália também está abaixo dos 2%. Temos que estar preparados para nos defender da Rússia sozinhos ou na coalizão dos países europeus mais dispostos e determinados. Temos alguns anos antes que a Rússia consiga reconstruir seu potencial e nos ameaçar. Por isso precisamos nos apressar.

Desdém. Trump não trata a UE como parceira, afirma Lorenz – Imagem: Arquivo/PISM
CC: O vice-presidente dos EUA, JD Vance, disse em Munique que os inimigos da Europa não são os chineses ou os russos, mas os governos que defendem o controle das mídias sociais e a restrição da liberdade de expressão na Europa. Esse tipo de discurso não é agressivo?
WL: É mais um sinal de que os EUA querem transferir o fardo maior da segurança europeia para os europeus, e têm vários pretextos para isso. Durante a Guerra Fria, havia uma convergência de interesses entre os EUA e a Europa Ocidental que não dizia respeito apenas a dissuadir a URSS, mas a promover valores semelhantes. Agora, a administração Trump envia a mensagem de que os EUA ainda são uma democracia, mas acusa os países europeus de se afastarem dos padrões democráticos. Eles acusam, por exemplo, a Alemanha de isolar partidos de extrema-direita, que tentam encobrir o nazismo e, por razões históricas, não são incluídos nos governos. A maioria dessas acusações é baseada em fatos distorcidos e em manipulações, além de terem natureza ideológica. Como instrumento de política, é algo que pode dar um pretexto para o eleitorado do movimento MAGA, de Trump, diminuir o apoio dos EUA à segurança europeia.
CC: Quais as chances de a Europa realmente construir uma política de defesa que não dependa dos EUA no futuro?
WL: Será algo muito custoso, mas possível. Nem todos os países europeus terão potencial e determinação para isso. Lembre-se de que, na União Europeia, temos quatro países neutros – Áustria, Malta, Chipre e Irlanda – que assinaram um tratado sobre a proibição de armas nucleares, o que torna impossível para o bloco se tornar um verdadeiro ator de defesa, com sua própria dissuasão nuclear. O que podemos fazer é fortalecer substancialmente nosso potencial convencional. Investiremos em sistemas que poderemos usar independentemente dos EUA, especialmente armas de ataque de precisão de longo alcance. Se a Rússia começar a guerra, não deve ser capaz de transformá-la em uma guerra de atrito, aquela que favorece um país que tenha maior potencial e menor respeito por seus próprios soldados. Há um grupo de países que pode defender efetivamente o flanco oriental da Otan e da União Europeia e dissuadir a Rússia: Polônia, Alemanha, França, Reino Unido, Romênia, os países nórdicos e os bálticos. •
Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem retaguarda’