Dez minutos antes da meia-noite de 6 de janeiro de 2023, uma sexta-feira, Anderson Torres embarcou de Brasília para a Flórida, nos Estados Unidos. Jair Bolsonaro, seu antigo chefe, estava por lá. Naquela sexta, houve uma reunião na Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal sobre as manifestações bolsonaristas previstas para 8 de janeiro. Torres tinha pulado do Ministério da Justiça para o comando da secretaria, que havia chefiado antes de integrar o governo do capitão, de 2019 a 2021. A reunião foi coordenada por Fernando Sousa de Oliveira, delegado da Polícia Federal como Torres, responsável pela área de operações integradas do ministério quando o colega de profissão comandava a pasta e o segundo na hierarquia da secretaria distrital no dia da invasão da sede dos Três Poderes. Outra participante: a coronel da PM de Brasília Cíntia Queiroz de Castro, chefe de operações integradas da secretaria.
À uma da tarde daquele 6 de janeiro, a área de inteligência da secretaria havia finalizado um relatório sobre o que esperar do 8 de Janeiro. Segundo o documento, a convocação da manifestação tinha teor “alarmante”. O plano, descrevia o texto, previa a “tomada do poder”, e esta “ocorreria principalmente com a invasão do Congresso”. Donos de armas, os CACs, estavam dispostos a “sitiar Brasília”, o que “denota a intenção de prática de atos de violência”. A área de inteligência da secretaria era comandada por outra delegada da PF subordinada a Torres na gestão Bolsonaro: Marília Ferreira de Alencar, ex-diretora de Inteligência do ministério.
À CPI da Assembleia Legislativa do Distrito Federal que se debruçou sobre o 8 de Janeiro, Torres disse não ter lido o relatório, apesar de ser um dos destinatários do documento. Teria chegado às suas mãos um pouco tarde, momentos antes da viagem marcada. Jorge Eduardo Naime, coronel da cúpula da PM de Brasília, réu no Supremo Tribunal Federal por omissão no quebra-quebra, também estava formalmente de férias em 8 de janeiro. Para Paulo Gonet, o procurador-geral da República, as férias não passaram de um “disfarce”, “uma estratégia deliberada de afastamento, que reforça a conivência implícita com as ações violentas que se aproximavam”. Está escrito nos argumentos finais da PGR enviados ao Supremo Tribunal Federal em 14 de fevereiro, última manifestação do Ministério Público antes do julgamento dos sete réus, previsto para ser concluído em 11 de março. Na acusação, há vários indícios de que a Polícia Militar estava “contaminada ideologicamente” pelo bolsonarismo e queria o caos, na esperança de o capitão voltar ao poder.
Tanto no ministério quanto na Secretaria de Segurança do DF, o fiel escudeiro mergulhou no golpismo
Teria Gonet sobre Torres a mesma visão de viagem “disfarce”? Há razões para acreditar que o ex-ministro e seus colaboradores Ferreira e Oliveira se encaixam no figurino de bolsonaristas torcedores do caos e que se omitiram na Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, a fim de facilitar o intento golpista. A secretaria tem recebido poucos holofotes da mídia, mas foi alvo de uma investigação específica da PF entre setembro de 2023 e dezembro de 2024. Apuração na qual despontam Torres, Oliveira, Ferreira e Castro.
O ex-ministro foi denunciado ao STF pelo procurador-geral há duas semanas. Gonet o incluiu ao lado de Bolsonaro e mais seis acusados na cúpula da tentativa de golpe. Marília Ferreira e Oliveira serão denunciados também, em uma ação à parte. Torres é personagem destacado da trama golpista, tanto pelo que fez na pasta da Justiça quanto pelo que fez, ou deixou de fazer, na Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Estava engajado na disseminação da ideia de que as urnas eletrônicas poderiam ser fraudadas. Logo ao assumir o ministério, em março de 2021, pediu à equipe um apanhado sobre o que havia a respeito da segurança (ou não) do sistema de votação. O STF havia acabado de anular as condenações de Lula e recolocado o petista no jogo eleitoral, decisão que Gonet crê ter abalado Bolsonaro. Em julho daquele ano, Torres participou de uma live na qual o capitão apontava risco de fraude e endossava o chefe. A PF abriu um inquérito sobre a live e interrogou o ex-ministro. Ele “admitiu, então, que mentira”, assinala o procurador-geral na denúncia. E repetiu a mentira um ano depois, em uma reunião ministerial, ressalta o “xerife”.
Na tal reunião, Torres mostrou-se disposto a tudo pelo chefe. “A gente vai atuar de uma forma mais incisiva”, afirmou. Mais: “Quero que cada um pense no que pode fazer previamente porque todos vão se foder”. E o que ele podia fazer? “Estamos aí, presidente, desentranhando a velha relação do PT com o PCC. Isso tá vindo aí através de depoimentos que estão há muito guardados.” Na véspera do primeiro turno, um site direitista publicou uma suposta ordem da facção para os filiados votarem em Lula. O mesmo, aliás, foi feito pelo direitismo na eleição paulistana de 2024 contra Guilherme Boulos, do PSOL.

Dubiedade. A PM do governador Rocha ciceroneou os golpistas. Envolvidos na tramoia permanecem nos respectivos cargos – Imagem: Ton Molina/AFP e Marcelo Camargo/Agência Brasil
No segundo turno da eleição presidencial, Torres comandou o plano de usar a Polícia Rodoviária Federal para dificultar o deslocamento do eleitorado lulista no Nordeste. Teve o apoio de Marília Ferreira e de Oliveira. Passada a eleição, participou de reuniões sobre o decreto golpista, com a presença dos comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Jr., avessos à conspirata. Aos dois, como ambos disseram à PF, Torres “apresentava fundamentos jurídicos” para a medida.
O ministro esteve no Palácio da Alvorada duas vezes (das 14h24 às 14h52 e das19h58 às 21h19) em uma data dramática da trama: 15 de dezembro de 2022. Nesse dia, uma campana fardada foi montada para espiar o juiz Alexandre de Moraes. Pelos planos da turma, em 16 de dezembro ocorreria a instalação de um gabinete de crise, eufemismo para governo golpista, de acordo com a apuração da PF. Em 14 de dezembro, houve uma última reunião com os chefes militares sobre o decreto no Ministério da Defesa. Torres tinha uma cópia, encontrada na casa dele por agentes federais. “O fato de a minuta ter permanecido na residência do denunciado, mesmo após a negativa dos comandantes das Forças Armadas, reforça que Anderson Torres permaneceu unido à organização criminosa, em comunhão de esforços com Fernando de Sousa Oliveira e Marília Ferreira de Alencar”, anota Gonet na denúncia.
O procurador-geral sugere a convocação do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, como testemunha pelo Supremo. Presume-se que o objetivo seria reforçar a acusação contra Torres. Após o 8 de janeiro, Rocha, em depoimento à PF, declarou “ter sido pego de surpresa com a viagem dele para os Estados Unidos”. O governador não é exatamente um santo na história. No fim das contas, foi ele quem permitiu a “contaminação ideológica” da PM, além de ter dado guarida política a golpistas.
“Todos vão se foder” se o golpe der errado, vaticinou Torres em uma reunião ministerial
Durante as investigações sobre os sete policiais acusados de omissão, a corporação escondeu do Supremo alguns papéis, mas Rocha manteve nos cargos a comandante da PM, a coronel Ana Paula Habka, e o corregedor-geral, Leonardo Siqueira dos Santos, ambos protagonistas da ocultação. Comenta-se em Brasília que Siqueira sairá em breve do posto. Para a sua vaga iria o coronel Juvenildo dos Santos Carneiro, autor de um parecer, em nome da corporação, que embasou, em junho de 2023, a recusa de entregar documentos à CPI do Congresso. A reportagem obteve uma cópia do parecer.
O governador também segurou no cargo por longo tempo a coronel Cíntia Castro. Em março daquele ano, a oficial foi considerada culpada pela corregedoria e, oito meses depois, pela CPI do Legislativo local. Acabou exonerada em 4 de fevereiro deste ano. Consta que é colaboradora de Renato Rocha, irmão do governador com planos de concorrer a uma vaga de deputado distrital. Castro mereceu destaque na investigação encerrada em dezembro pela PF. O delegado Raphael Soares Astini aponta “grandes falhas” na Secretaria de Segurança Pública, “em especial em seu sistema de inteligência”, e que elas “foram cruciais para o colapso da segurança pública durante os atos de 08 de janeiro”. Tudo isso, apesar de, constata Astini, a secretaria contar à época “com um grupo de autoridades altamente experientes, com amplo histórico em posições estratégicas de segurança pública”.
Castro era, desde maio de 2021, do setor de eventos e atividades especiais da secretaria. Tornou-se chefe da repartição em abril de 2022. Torres foi o responsável, durante dois anos (2007 e 2008), na PF pela área de inteligência contra o crime organizado. Fez ainda um curso de inteligência estratégica na Escola Superior de Guerra. Marília Ferreira entrou em maio de 2021 na Diretoria de Inteligência do Ministério da Justiça. Oliveira estava na pasta desde junho de 2020. Era da Diretoria de Operações e foi alçado ao comando da área em março de 2022. Tanto a diretoria sob sua gestão quanto aquela de Ferreira estão abrigadas no mesmo guarda-chuva, a Secretaria de Operações Integradas.

Cadeia de comando. A coronel Cíntia Castro também fez sua parte na conspiração – Imagem: Renato Alves/Agencia Brasilia
Ferreira e Oliveira trabalharam juntos nos preparativos para aquela operação da PRF nas rodovias nordestinas. “Temos que pensar na ofensiva quanto a essas pesquisas”, escreveu ela a ele no dia do primeiro turno. A delegada teve o celular apreendido pela PF e, apesar de ter apagado muitas conversas, a polícia conseguiu reconstituir algumas. Em 6 de outubro de 2022, Ferreira procurou Oliveira de novo: “Bom, minha parte fiz. Pior que estou ansiosa pra kcete, doida para poder fazer alguma coisa”. Ela havia encomendado à equipe um mapa sobre onde Lula tivera alta votação no Nordeste. Deixou “perplexo”, segundo Gonet, o encarregado da coleta de dados, Clebson Ferreira de Paula Vieira. O procurador-geral recomenda ao Supremo a tomada de seu depoimento.
Com o mapa em mãos, Marília Ferreira perguntou a Oliveira, em 17 de outubro de 2022, em um grupo de WhatsApp chamado “EM OFF”, qual seria o próximo passo. Resposta: “52 x 48 são 5 milhões de votos para virar”. Dois dias depois, houve uma reunião de Torres com a cúpula da PF e da PRF. “Achei que o 01 falo (sic) bem ontem na reunião”, comentou Ferreira no grupo. “Falou bem demais, isento”, respondeu Oliveira. “Isento porra nenhuma (…) meteu logo um 22”, disse a delegada. Bolsonaro concorreu com o número 22 na urna, o do PL.
Se deixou Clebson Vieira “perplexo” pelo que havia feito na área de inteligência no Ministério da Justiça durante a eleição, a delegada causou reação parecida na policial civil Cláudia Souza Fernandes pelo que deixou de fazer às vésperas do 8 de Janeiro de 2023 com outro documento. Fernandes foi a autora do relatório de inteligência 06/2023. Enviou-o ao chefe imediato, o coronel da PM Jorge Henrique da Silva Pinto. O documento foi encaminhado só a Oliveira, vice-secretário de Segurança Pública, e Cíntia Castro. É o que diz a investigação da PF finalizada em dezembro. “Não se sabe ao certo se a decisão de restringir a difusão do relatório foi exclusivamente de Jorge Henrique ou se foi uma determinação direta de Marília Ferreira Alencar, então Subsecretária de Inteligência. Contudo, tal ponto é de menor relevância no contexto geral, pois, estando na posição de comando, caberia a Marília garantir a aplicação dos princípios fundamentais da atividade de inteligência (necessidade), especialmente por sua vasta experiência na área, era esperado que Marília tivesse agido para assegurar a difusão correta do relatório, independentemente das sugestões de Cláudia”, anota Astini.
A Secretaria de Segurança e a PM do Distrito Federal estavam contaminadas pelo golpismo bolsonarista
Por onde exatamente o relatório circulou é um mistério. Na denúncia contra a cúpula da PM, a Procuradoria diz que os acusados tiveram conhecimento do documento. Na denúncia contra Torres, Gonet afirma: “A gravidade das informações que deixaram de ser compartilhadas confirma que houve omissão dolosa dos garantes da ordem pública, em prol do plano disruptivo da organização criminosa”. Segundo a investigação da PF, “referido documento, aparentemente, não foi considerado por Anderson Torres, que, apesar das advertências, prosseguiu com sua viagem ao exterior sem tomar as providências necessárias. Adicionalmente, a Subsecretaria de Inteligência não difundiu de forma eficaz o conteúdo do relatório”.
A investigação da PF diz que Marília Ferreira represou mais uma fonte valiosa de informação sobre o 8 de Janeiro. Neste caso, um relatório da Força Nacional de Segurança, vinculada ao Ministério da Justiça, com data de 5 de janeiro de 2023. Cláudia Fernandes disse à PF tê-lo recebido no dia 6 de janeiro. Segundo a polícia, a Secretaria de Segurança não o repassou a ninguém. Se o golpe bolsonarista não deu certo, não foi por falta de ação, ou de omissão, de Torres e seus subordinados. •
Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Torres, o elo’