A histórica e secular luta dos povos indígenas em defesa de seus territórios ganha um novo capítulo a partir de um anteprojeto de lei proposto pelo ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal, autorizando a exploração econômica em terras indígenas (TIs), inclusive o garimpo, atividade extrativista especialmente danosa não apenas para os povos originários, mas também ao meio ambiente. O ministro é relator de cinco ações que questionam a tese do Marco Temporal, que foi julgada inconstitucional em setembro de 2023 pelo próprio STF, mas ressuscitada pelo Congresso Nacional no mês seguinte, com a aprovação da Lei 14.701/2023. O tal marco estabelece que os indígenas só têm direito às terras que já ocupavam ou reivindicavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal, tese defendida amplamente pelos ruralistas, principais interessados na exploração dessas áreas.
A proposta de Mendes consta de uma minuta apresentada à Comissão de Conciliação do STF, criada em agosto do ano passado para discutir o impasse em torno do Marco Temporal. O texto fala em “paz social” para justificar a exploração dos territórios indígenas, facultando o exercício de atividades econômicas à “própria comunidade indígena, admitidas a cooperação e a contratação de terceiros não indígenas”. Essa exótica parceria inclui atividades agrossilvipastoris, turísticas e a realização de pesquisa e lavra de recursos minerais. O documento prevê ainda intervenções nessas áreas por parte do Poder Executivo para realização de obras de infraestrutura e de defesa nacional, ressalvado o “interesse público” do empreendimento.
Pela ‘paz social’, o ministro do STF assumiu o papel de legislador
Representante legal da população indígena, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) retirou-se da comissão logo nas primeiras reuniões, alegando tratar-se de uma “conciliação forçada” e uma “violência por parte do Estado brasileiro”, posição reafirmada após a divulgação da minuta de Mendes. “A proposta de conciliação e o texto apresentado pelo ministro ampliam a problemática em relação à questão indígena”, avalia Kleber Karipuna, da coordenação da Apib. “O texto afasta o Marco Temporal ao mesmo tempo que libera a exploração de minérios. É como se estivessem dizendo assim: ‘Calma, que o Marco Temporal não vai existir, mas a gente tem outra coisa que vale ainda mais’, que é a mineração e o uso de retenção das terras indígenas”, opina a deputada federal Célia Xakriabá, do PSOL, suplente na comissão de conciliação e preterida pelo novo presidente da Câmara, Hugo Motta, que nomeou a também parlamentar indígena Sílvia Waiãpi, bolsonarista de primeira hora, para representar o Legislativo no colegiado, em substituição ao titular Lúcio Mosquini, deputado ruralista do MDB de Rondônia. Xakriabá era uma das presenças mais assíduas da comissão, compareceu a 12 das 16 sessões realizadas, enquanto o titular do cargo participou de apenas duas reuniões. “Quando fomos pedir ao novo presidente da Casa para substituir o titular, para ter direito a voto na comissão, ele falou que tinha compromisso com a bancada ruralista. Para a gente soou como algo violento, porque eles poderiam ter usado qualquer pessoa, mas escolheram uma indígena que tem todo o caráter simbólico.”

O magistrado conseguiu desagradar tanto os ruralistas quanto os povos originários – Imagem: Arquivo/STF
A manobra de Motta, que se reunira com Mendes alguns dias antes da apresentação da minuta, preservou a força da bancada ruralista na comissão, que também tem entre seus membros o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, Pedro Lupion (PP), indicado por Arthur Lira, ex-presidente da Câmara. Lupion esteve presente a uma única sessão da comissão. Após a apresentação da minuta, o parlamentar saiu em defesa da tese ruralista, que considera “inegociável”, e destilou ameaças. “Enviem ou não algum projeto ao Congresso Nacional, o posicionamento desta bancada será exatamente o mesmo e nós vamos desenvolver o texto com o Marco Temporal do jeito da gente. Não vamos tergiversar sobre esse assunto, porque 80% do Congresso apoiou essa tese, tanto na aprovação quanto na derrubada do veto. Caso haja necessidade, vamos reiterar esses votos”, disparou Lupion, um dos bolsonaristas mais radicais no Parlamento, referindo-se ao veto do presidente Lula à parte da Lei 14.701/2023, derrubado na Câmara.

O garimpo ilegal está na origem da crise humanitária dos Yanomâmi. À espera do reconhecimento de seus territórios, os Kaiowá sofrem com ataques de milícias rurais no Mato Grosso do Sul – Imagem: Christian Braga/Farpa/CIDH e Paulo Cézar/Agência Pará
“O Supremo já analisou o Marco Temporal. Se considerou essa tese inconstitucional, o tribunal deveria solicitar a extinção do projeto (que estava em tramitação na Câmara) e não levar isso para dentro da Corte, abrindo a possibilidade de negociar. Pior, incluíram coisas sem relação com o tema, como o aproveitamento das TIs para fins comerciais, a exemplo da mineração. Se isso vingar, vai ser uma tristeza para os povos indígenas e vai ficar muito mal para o STF”, afirma o indigenista Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai. “O garimpo, em sua maior parte, é uma atividade ilegal. Como é que você vai criar uma lei permitindo a continuidade de uma ilegalidade nas terras indígenas? É muito difícil entender o comportamento dos ministros da Corte. O Legislativo e o Judiciário têm se mostrado inimigos dos indígenas.” No Senado, há outra frente em favor do Marco Temporal, a PEC 48, sob análise da Comissão de Constituição e Justiça.
A TI Yanomâni foi devastada pela invasão de mais de 20 mil garimpeiros
Os danos provocados pela mineração, principalmente nos territórios indígenas, não são novidade para ninguém e o exemplo recente mais conhecido é a crise humanitária no território Yanomâmi, em Roraima, que há anos vem sofrendo com a presença do garimpo ilegal. No início de 2023, o caso ganhou repercussão internacional, tamanha a tragédia provocada pela presença de mais de 20 mil garimpeiros na região, responsáveis por desmatamento da floresta, contaminação dos rios e violência contra os indígenas, incluindo assassinatos e violência sexual. Ao contrário de combater esse tipo de crime, a minuta do STF convalida tal atuação. Incluir a mineração na minuta do STF é uma forma de regulamentar a atividade, uma forma de contemplar o tema que ficou de fora da Lei 14.701. O mais surpreendente para os indígenas é que o assunto não esteve presente nas reuniões da comissão de conciliação.

Fonte: Painel Terras Indígenas no Brasil/Funai. Última atualização: 11/9/2024
Para o advogado Mauricio Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), não cabe ao STF apresentar projeto de lei ao Congresso, mas fazer cumprir o que determina a Constituição e resguardar os direitos das minorias, como forma de impedir que “as maiorias de ocasião” ataquem os direitos fundamentais dessas minorias, conforme constam nas cláusulas pétreas da Carta Magna e que não podem ser modificados. “O STF deveria limitar-se a fazer aquilo que é o seu papel, que é julgar a legalidade da nova lei (14.701/2023), com repercussão geral, vinculando a decisão a todas as demais Cortes do País. O mais coerente seria julgar as ações que tratam dessa lei como elas devem ser julgadas, e não pela apresentação de um projeto legislativo. E, ao fazer isso, deveria guardar a coerência com o julgamento que fez recentemente, quando considerou o Marco Temporal inconstitucional. Muito provavelmente deve haver um debate sobre as funções do Supremo, esse é um aspecto central”, observa.
O advogado do ISA, entidade que consta como amicus curiae nas ações contrárias ao Marco Temporal que tramitam no Supremo, ressaltou ainda a falta de legitimidade da comissão, uma vez que não tem representação legal dos povos originários. “Trata-se de uma comissão que começou sem equilíbrio, com baixa intensidade de debates e sem a presença dos maiores interessados, que são os próprios indígenas. Acabou resultando numa proposta de conciliação que não houve acordo em praticamente nada. A grande maioria dos tópicos foi objeto de discórdia, de desavença entre as partes. É uma comissão de conciliação que chega ao fim sem conciliar. Uma conciliação forçada não pode resultar na resolução de um conflito. A tendência é que qualquer coisa que venha a ser aprovada nessa comissão seja objeto de análise do pleno do tribunal”, diz Guetta.

Hugo Motta segue os passos de Arthur Lira no debate do Marco Temporal – Imagem: Mário Agra/Agência Câmara
O anteprojeto de Gilmar Mendes também prevê mudanças profundas da legislação sobre os direitos indígenas, colocando em risco, inclusive, as regras de demarcação, questão que tem motivado uma onda infindável de violência contra os povos tradicionais, como os constantes ataques aos povos Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, e Avá-Guarani, no Paraná. “A proposta altera procedimentos administrativos que praticamente inviabilizam a demarcação de terras indígenas no País”, diz Luís Ventura, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi. Segundo o Painel Terras Indígenas no Brasil, atualizado em setembro de 2024, o Brasil tem 631 terras indígenas, e 162 em estudo ou com portaria de interdição. Nos últimos dois anos, o governo Lula homologou 13 TIs, e existem outras 11 portarias declaratórias em tramitação no Ministério da Justiça.
A proposta de Mendes deveria ter sido votada na segunda-feira 24, mas, a pedido da Advocacia-Geral da União, o ministro suspendeu as sessões por 30 dias, com o retorno das atividades previsto para 26 de março. Os pontos não consensuais serão objeto de votação, prevalecendo a decisão da maioria. “Desde o início, entendemos que os debates seriam uma tentativa de negociação dos nossos direitos, de manipular e mudar as regras do jogo, com a flexibilização do rito demarcatório, de autorizar atividades produtivas nos territórios indígenas, uma condução para coagir, direcionar e pressionar para uma conciliação em temas inconciliáveis”, ressalta Kleber Karipuna. “Esse resultado era previsível e só confirma que a decisão de se retirar dessa comissão foi assertiva. Vamos continuar fazendo as incidências necessárias na Suprema Corte, com os outros ministros, no sentido de derrubar essa tentativa de conciliação sobre os nossos direitos.”
Com indicados de Lira e Motta, os ruralistas formam maioria na Câmara de Conciliação do Supremo
Além da Apib, outras entidades indígenas criticaram os últimos encaminhamentos da comissão de conciliação do STF. A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) publicou uma nota contrária à nomeação de Silvia Waiãpi para a comissão e saiu em defesa de Célia Xakriabá. Para Beto Marubo, da coordenação da Univaja, a minuta apresentada só traz mais insegurança jurídica. “O ministro relator votou pela inconstitucionalidade do Marco Temporal e, agora, arrumou um jeitinho de reavaliar essa tese. Isso é uma incoerência por parte do STF, que deveria prezar pela Constituição”, diz, afirmando que o documento representa um “genocídio para os povos indígenas, inclusive os povos isolados”. A liberação do garimpo em terras indígenas, acrescenta Marubo, tende a normalizar a barbárie no interior desses territórios. “Teremos um retrocesso significativo, inclusive no âmbito internacional, se convalidar a mineração em terras indígenas. Estamos indo para a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, onde vamos expor o que está acontecendo. Todos os dados científicos apontam que nossas terras são importantes para deter o desmatamento, contribuem para o enfrentamento do aquecimento global.”
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) também publicou nota contra a minuta do STF. “A mineração é uma atividade com alto potencial danoso à saúde dos indígenas, ao meio ambiente e ao modo de vida de cada povo. Qualquer debate acerca do tema deve ser feito com o devido respeito à autodeterminação dos povos indígenas e ao direito de decidir pela prevalência de seus modos de vida, frente a quaisquer interesses econômicos”, diz o texto. “Tivemos grandes avanços nesses dois primeiros anos que inauguramos a presença indígena no Poder Executivo. Isso permitiu uma incidência direta dentro do governo federal, com foco na garantia de direitos dos mais de 305 povos que habitam o nosso país”, complementa a ministra Sônia Guajajara, destacando que a política indigenista foi retomada no governo Lula “após o total abandono da gestão passada.”

A proposta ameaça os avanços obtidos pelo governo contra o garimpo, afirma Guajajara – Imagem: Rafael Pereira/G20
Após a saída da Apib da comissão de conciliação, Gilmar Mendes solicitou ao MPI e à Funai que indicassem novos representantes da comunidade, solicitação atendida com a ressalva de que as indicações não tinham legitimidade para representar a comunidade indígena. Nesse caso, os indígenas ficaram em desvantagem numérica, com apenas seis integrantes, de um total de 24 no colegiado. Mesmo com a falta de equidade, o STF deu continuidade aos trabalhos, tendo como pauta prioritária não mais o Marco Temporal, mas o detalhamento das regras para a exploração econômica dos territórios indígenas e para indenização de proprietários rurais que tivessem títulos legítimos nessas áreas. “Desde o início, o movimento indigenista alerta que a mesa de conciliação não era um instrumento adequado, competente e legítimo para discutir direitos fundamentais”, salienta Ventura, do Cimi. “Direitos humanos não podem ser negociados, modulados ou conciliados. Eles devem ser garantidos num Estado Democrático de Direito”. •
“NÃO EXISTE UM MEIO-TERMO”
Autorizar a mineração em TIs “abre um precedente muito perigoso”, alerta a deputada Célia Xakriabá

“Vamos levar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos” – Imagem: Arquivo/Ministério dos Povos Indígenas
Principal defensora dos povos indígenas na comissão de conciliação do STF, a deputada Célia Xakriabá propõe que a liberação da mineração em TIs seja denunciada junco à Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso venha a ser aprovada. Ela comenta este e outros pontos na entrevista a seguir.
CartaCapital: Como a senhora avalia a minuta apresentada pelo ministro Gilmar Mendes?
Célia Xakriabá: É um texto absurdo, principalmente considerando um ano de COP. Os territórios indígenas são apontados como uma das últimas alternativas para barrar a crise climática. O Brasil precisa ter uma postura mais corajosa, uma proposta mais ambiciosa em defesa dos povos indígenas e do meio ambiente, e essa minuta não representa isso. O Marco Temporal deveria ser reconhecido como um crime climático. Já estamos trabalhando com a estratégia de denunciar esse caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A partir do momento que a gente escancara, denuncia, passa a ter um apelo muito grande da sociedade, que vai pressionar o Congresso. Queremos, pelo menos, constranger esses deputados e tornar público o absurdo que estão fazendo ao abrir os territórios indígenas para exploração.
CC: Qual o impacto da mineração nas TIs?
CX: A mineração representa o projeto mais sofisticado de violação, de destruição de direitos. É uma arma apontada na cabeça dos povos indígenas, estimulando os conflitos territoriais. Quando não se avança na demarcação das nossas terras e se coloca a tentativa de abrir esses territórios para exploração, isso vai desencadear um processo perigoso não só de violência, mas de dividir os povos indígenas, uma estratégia colonialista e capitalista. A mineração mata o presente e o futuro das gerações, representa o estupro da terra. Não é solução nesse momento de crise climática. Nós precisamos de uma transição econômica que não nos mate. Abrir territórios indígenas é pensar em uma economia predatória.
CC: É possível pensar numa proposta intermediária?
CX: Não existe um meio-termo, uma meia autorização, um meio posicionamento. Isso abre um precedente muito perigoso. A mineração mata, e legalizar essa atividade em terras indígenas é reconhecer e considerar essa destruição como algo legal.
Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Conciliação forçada’