Cantada em prosa, verso e teses acadêmicas, a retomada do Carnaval de rua no Rio de Janeiro, símbolo da redemocratização do País, comemora dois importantes marcos em 2025. Lá se vão 40 anos da criação de blocos carnavalescos emblemáticos, como o Simpatia É Quase Amor, Suvaco do Cristo e Barbas, entre outros, e 30 anos do Carnaval que marcou a volta dos blocos de rua ao posto de principal manifestação popular carioca. As datas redondas deveriam ser um convite à festa, mas o cenário de crescente privatização do Carnaval, com o predomínio de grandes marcas e celebridades, aliado ao anúncio do fim das atividades de agremiações que habitam o coração do folião, faz com que diversos representantes do setor anunciem o fim de uma era.

A sensação de fim de ciclo aumentou quando o quarentão Suvaco do Cristo anunciou que encerrará as atividades em 2026. Na sequência, o Imprensa Que Eu Gamo, bloco criado por jornalistas há exatos 30 carnavais, anunciou que faz este ano seu último desfile. Para tristeza dos cariocas, ambos engrossam um grupo composto de outros nomes de muita tradição, como o Escravos da Mauá, fundado há 33 anos e que encerrou suas atividades em 2022, e o Bloco de Segunda, outro trintão, que no Carnaval de 2023 pendurou os tamborins.

As razões que levam ao fim de blocos tradicionais e a maneira como o espaço deixado por eles está sendo ocupado causam apreensão. Nos últimos anos, a ascensão dos chamados megablocos, eventos que mobilizam dezenas de milhares de pessoas, concentrou os investimentos das principais marcas e empresas nessa modalidade de desfile geralmente capitaneada por cantores pop ou outras celebridades. A onda começou em 2009 com o Bloco da Preta, da cantora Preta Gil, e hoje há megablocos comandados por ­Ludmila, Anitta, Pabllo Vittar, ­Lexa e Juliette, entre outros.

Os blocos tradicionais estão se despedindo dos foliões. O excesso de regras impostas pela Prefeitura inviabiliza a sobrevivência deles

Para piorar, uma novidade do Carnaval carioca de 2025 são os blocos que levam o nome de empresas ou têm seus desfiles vinculados a ações de marketing. Isso foi possível depois que a prefeitura publicou uma norma que permite a outras empresas, que não as mantenedoras oficias do Carnaval do Rio, fazer contratos de patrocínio com os blocos. Com isso, o leque de “foliões” do mercado inclui marcas de bebidas, redes de farmácias, lojas de departamento, aplicativos de entrega e até mesmo uma casa de criptomoedas. As ações têm gosto duvidoso, como a da loja de roupas que convida os integrantes do bloco a comprar suas fantasias na hora do desfile ou a da marca de supercola que anuncia um bloco de fantasias coladas, sem nenhuma costura.

“O dinheiro fala mais alto desde que a prefeitura implantou esse novo modelo de Carnaval em 2009, com a criação de uma série de regras. O Poder Público passou a entender os blocos de rua não como uma manifestação espontânea, mas como um grande e lucrativo evento”, observa Tiago Ribeiro, pesquisador do Carnaval e autor do livro Os Blocos do Carnaval Carioca (Ed. Multifoco). Hoje, para serem considerados oficiais, os blocos precisam cadastrar-se seis meses antes do Carnaval e atender a uma série de exigências impostas por Corpo de Bombeiros, Defesa Civil e Polícia Militar: “Gasta-se muito dinheiro e a burocracia é enorme. Os blocos que se cadastram junto à prefeitura precisam tornar-se empresas para lidar com todas essas questões”.

Presidente da Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua do Rio de Janeiro (Sebastiana), a também pesquisadora do Carnaval Rita Fernandes afirma que a realidade foi mudando à medida que a mídia descobriu os blocos, especialmente após a entrada da TV Globo na folia: “Na época, foi interessante para a Sebastiana fazer aquela parceria, porque o Carnaval estava muito atrelado ao xixi, ao lixo. Precisávamos mudar essa narrativa e mostrar que o Carnaval trazia benefícios para a cidade em termos de economia criativa e geração de emprego e renda. Era uma pauta que a gente queria, porque as associações de moradores estavam se organizando contra o Carnaval”. A cobertura de mídia despertou o interesse de artistas, que entenderam que o bloco era uma plataforma comercial de marketing para alavancar carreiras, e das empresas interessadas em divulgar suas marcas e produtos: “Uma coisa foi alimentando a outra”.

Competição desigual. Estrelas como Anitta e Pabllo Vittar assumiram o protagonismo nas ruas do Rio – Imagem: Fred Pontes/Riotur e Fernando Maia/Riotur

O cenário atual, diz Fernandes, é de crescimento exagerado e perda da autenticidade. “Tudo começou a se perder quando cresceu demais. Vieram os carnavais de São Paulo, Belo Horizonte, de Brasília, todos no rastro do Carnaval de rua do Rio. Hoje está desse jeito, com marcas para tudo quanto é lado, produtoras criando blocos, não é mais aquela criação espontânea de grupos de amigos que se encontram no botequim e resolvem botar um bloco na rua.” A presidente da Sebastiana avalia que vivemos o fim das manifestações de rua como as conhecemos nas últimas décadas: “Ter blocos criados nas produtoras não é Carnaval. Deixa de ser quando uma marca se apropria completamente de uma tradição que deveria ser espontânea e popular”.

Outra constatação é a mudança do perfil do folião dos blocos, com o carioca dando lugar aos turistas. Segundo a ­Riotur, empresa municipal de turismo, neste Carnaval são aguardados na cidade até 10 milhões de turistas, dos quais 6 milhões afirmam querer participar diretamente da folia. Ao considerar apenas o calendário oficial da prefeitura, serão 482 desfiles de blocos, 29 a mais que no ano passado, divididos por 37 dias em praticamente todos os bairros da cidade.

O ambiente político no Rio também está muito diferente daquele que marcou a retomada dos blocos de rua: “Naquela ocasião, era uma saudação da espontaneidade e também como uma resposta ao fim da ditadura e do período de restrição de atividades ao ar livre, dos direitos de coletividade. Os blocos surgem nesse espírito pós-ditadura”, ressalta Ribeiro. O especialista contesta ainda o conceito de retomada: “Não houve exatamente uma retomada, mas sim uma mudança profunda na forma de encarar os blocos de rua. Isso se deveu ao surgimento de alguns blocos na Zona Sul que contavam com a participação de importantes intelectuais do período, que chamaram a atenção da imprensa pelo seu formato, que se caracterizava pela abolição do uso da corda que separava a banda dos foliões, pela criação de sambas próprios e pelo utilização de camisetas temáticas, de uso não obrigatório, assinadas por artistas plásticos renomados”.

Fundador do Barbas, Sérgio Henrique Alvarez, o Tchecha, relembra o movimento surgido há 40 anos: “No rastro do fim da ditadura, começaram a surgir vários blocos: Imprensa, Suvaco, Simpatia, Barbas, Meu Bem e Carmelitas, entre outros. Todos os dirigentes desses blocos cresceram sob o peso do regime militar e eram progressistas. O Carnaval de rua no Rio era quase inexistente e, com o ambiente político aliviado, as pessoas começaram a se mobilizar para criar blocos. Acho que o Simpatia foi o primeiro”. Nessas agremiações, a tradição progressista se mantém: o tema do Simpatia em 2025 é “Carnaval Sem Anistia!”, e o do Barbas é “Jogando a Pipa em Cima do Golpe Tabajara”.

Tchecha atribui o fim de blocos que marcaram a retomada a diversos fatores: “Nos últimos anos, a burocracia exigida para os blocos aumentou muito. As pessoas foram envelhecendo e aqueles blocos que não criaram sucessores na direção começaram a parar de sair”. Hoje, o Barbas sobrevive com o que recebe através da Sebastiana e complementa com a venda de camisas. “Mas isso não gera o suficiente para as necessidades. O problema é que o aumento do número de blocos faz com que os custos com carro de som, músicos da bateria e segurança também aumentem a cada ano.”

Com a apropriação da festa pelas grandes marcas, a folia perdeu a espontaneidade, avaliam especialistas

Não é só a Sebastiana que organiza os blocos do Rio. Nos últimos anos, outras associações, como a Coreto e a Desliga, representam o polo que se opõe às regras impostas pela prefeitura e aos rumos que vem tomando o Carnaval carioca. Um dos que estão na linha de frente da “resistência”, como se define esse setor, é o agitador cultural e mestre de bateria Sérgio Monteiro, também, conhecido como Mestre Serginho. Morador do Méier, tradicional bairro da Zona Norte carioca, ele tem se dedicado a colaborar na construção de ­duas novas agremiações criadas no ano passado: o La Belle Bloco, formado por músicos e poetas, e o Lança-Perfume, em homenagem à cantora Rita Lee: “Faço oficinas todos os sábados, as pessoas chegam sem saber segurar o instrumento e saem tocando. A gente toca funk, forró, marchinha, ijexá, maculelê, ciranda. Fazemos essa mistura porque acreditamos que o Carnaval é do povo, e resistimos à privatização neoliberal do espaço público”.

Monteiro afirma que o atual processo de mercantilização e privatização dos blocos “traz segregação social ao povo periférico, de favela, preto e pobre”. Ele diz que o movimento de resistência visa “garantir ao folião que não tem dinheiro o direito de poder brincar na rua, ao músico de poder levar sua arte, ao ambulante de poder vender sua água, sua cerveja”. E ressalta que, mesmo com a constante repressão da prefeitura, a existência dos blocos ditos clandestinos é amparada pela lei: “Se o bloco não tiver autorização, a guarda vem para tirar, apesar do artigo 5º da Constituição Federal, que garante o direito de manifestação cultural espontânea. A única coisa que precisamos legalmente fazer é dar um aviso prévio, não fechar a rua, não passar das 22 horas, coisas assim. Isso está também no artigo 23 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro”.

Rita Fernandes afirma não ver no curto prazo o surgimento de outro modelo de financiamento do Carnaval de rua: “Eu acho que só mudará essa tendência quando o Carnaval ficar tão comercial, a ponto de perder o interesse e a naturalidade”. Ela avalia que isso já começa a acontecer no Rio: “O carioca não adere muito a esse modelo, mas é difícil fazer uma previsão. Já tivemos muitos modelos que foram se alternando pelas próprias mudanças orgânicas da sociedade, da política, do mercado, das marcas. O Carnaval vai se modificando, então nada é para sempre”. A presidente da Sebastiana faz, porém, um alerta: “Se não encontrarmos um modelo e não firmarmos pé na posição de que precisamos manter nossas tradições, nossas cores e nosso fazer, vamos deixar o mercado engolir a todos e matar o Carnaval de rua”. •

Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Folia S.A.’

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Last Update: 26/02/2025