Agricultura Familiar, fato ou fake?

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Quando esta coluna deu início à série concernente o papel da qualidade dos índices sobre a política monetária, teve de dar destaque à inflação de alimentos. Não se imaginava que a questão estivesse tão longe do imaginário dos técnicos envolvidos no assunto. Essa falta de consciência ficou patente num evento recente em que a diretora técnica de um grande instituto tratou o café do Brasil e o do Vietnã como sendo o mesmo produto. Na verdade, o café produzido no Brasil tem, como maior concorrente, a Colômbia, mesmo que ela produza a metade, em peso e volume, do que se registrou no ano passado para o país do sudeste da Ásia. É que o café Arábica, que se produz em países como Quênia, Etiópia, América Central, Colômbia e Brasil, não  é a mesma espécie que o café Robusta, que se produz no Vietnã. Os dois produtos não concorrem diretamente entre si. O fato de ter havido uma praga no Vietnã não induz ao aumento do preço do Arábica, mesmo que, em muitos casos, haja composição entre as duas espécies na bebida posta à disposição do consumidor. A propósito, o Brasil também é um grande produtor de Robusta em regiões baixas e quentes como Rondônia e litoral do Espírito Santo, mas a produção é pífia perante a outra espécie. Assim, o aumento no preço tem a ver com o fato de a China estar migrando do consumo majoritário de chá para a infusão do café. Claro que o consumo chinês está sujeito às mais variadas composições, conhecidas como blending no comércio. Se não fossem essas composições, o plantio no Vietnã não se teria estabelecido. É mais ou menos como tomate e batata, ambos são da mesma família e compõem saladas, mas o mercado de um não afeta, nem é afetado pelo outro.

É preciso interromper a sequência para conversar um pouco sobre o mercado de hortaliças, incluindo raízes e tubérculos. Em outubro de 2021, esta coluna publicou uma matéria chamada “Agricultura, Cidades e Eletricidade, um triângulo nada amoroso”. Ali, apesar de ter o foco  na crescente dependência de energia por parte do agro, dá-se uma ideia de como a produção de hortaliças foi parar no colo de megaprodutores, tendo há muito deixado de ser alvo da agricultura familiar. Não se pode conceber que um assentado tenha acesso a um pivô central que custaria, no mínimo, US$ 270 mil e que o custo mensal para seu funcionamento, considerando operação, manutenção e consumo de energia, atinja os US$ 27 mil ao mês. Isso restringe o uso dessa tecnologia aos itens menos perecíveis e de mais longa vida de prateleira como cenoura, cebola, batata, alho, beterraba, tomate, pimentão e alguns poucos outros produtos, daí a redução da variedade em exposição nos supermercados. Mesmo as folhosas[1], dantes umbilicalmente ligadas à agricultura familiar, estão-se dirigindo ao agronegócio. Dois exemplos disso são o repolho e a alface americana, não à toa semelhantes em formato, que se destina à resistência mecânica e ao prolongamento da vida de prateleira.

O fenômeno acima é mundial. Algumas culturas têm um périplo que abrange todo o território nacional. No Brasil, um bom exemplo é a batata, que, ao longo do ano, migra, estado a estado, de Pernambuco a Sta. Catarina e vice-versa. Nos Estados Unidos, além da batata, há a alface que, no auge do verão está em Utah; no pico do inverno, encontra-se no Texas. O alvo é a constância de abastecimento, anseio do comércio, seja dos supermercados, seja dos estabelecimentos de alimentação, que veem a sazonalidade como inimiga.

Pelo ponto de vista dos supermercados, a área de loja destinada aos alimentos divide-se em açougue, refrigerados, frigorificados, feira e mercearia. Todo o produto vegetal in natura fica na feira e os itens são tratados como folhosas, frutos, raízes e tubérculos. Há uma exceção que, quando este autor lecionava varejo em alguns cursos de graduação e pós-graduação, chamava de “trio elétrico”, termo que se tornou usual no mercado. Ele é composto por tomate, cebola e batata. Se algum desses itens faltar, o consumidor larga o carrinho onde estiver e dirige-se a outro estabelecimento.

Essa busca por constância de abastecimento modificou radicalmente o fluxo comercial. Existem basicamente dois tipos de produtores, os que beneficiam os seus produtos e os que usam beneficiadores autônomos. Cenouras e batatas, por exemplo, passam pelos lavadores que têm contratos com os supermercados, entregando sua mercadoria diretamente  nos centros de distribuição, onde a carga é fracionada e entregue às lojas. Isso deixa de fora os centros estatais de abastecimento, que acabam por ficar nas mãos de atravessadores, tendo por clientes os supermercados independentes, as pequenas redes e o comércio de refeições. Megaempresas como Benassi, oriundas de boxes[2], têm seus mateiros, que percorrem as lavouras familiares, adquirindo as mercadorias que os grandes não querem produzir por não tolerarem mecanização intensiva. Aliás, a figura do produtor familiar com uma pedra[3] num centro público de distribuição ficou no passado. É que o custo de manutenção da pedra é tão alto que o volume passa a requerer aquisição de terceiros.

A  própria legislação contribui para afastar a agricultura familiar do fluxo comercial. As caixas de roça não podem ser reaproveitadas e as caixas tipo K, padrão dos centros de distribuição precisam ser devolvidas vazias, sendo um eterno motivo de conflito para saber quem arca com as danificadas. A solução tem sido usar caixas de papelão, que agregam custo ao produto e não estão disponíveis em pequena quantidade nos municípios majoritariamente ligados à agricultura.

Fica a pergunta, existe espaço para agricultura familiar? Sim, existe, seja para produtos que ainda não têm cultivares adequadas à produção em massa, seja na agricultura orgânica, mas fica muito difícil crer na afirmação recorrente de que 70% do que comemos vem da agricultura familiar. É imprescindível que, antes de oferecer dados numéricos, que se desenhe os caminhos entre o campo e o prato, inclusive, para que os índices não se tornem inverossímeis.


[1] Refere-se às verduras como alface, espinafre, agrião, couve e outras.

[2] Estabelecimento comercial de compra e venda de produtos agrícolas em centros públicos de distribuição.

[3] Estabelecimento destinado à venda de produtos próprios em centros públicos de distribuição.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

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Last Update: 25/02/2025