A redução da jornada de trabalho é uma luta pela dignidade do trabalho
por Marilane Teixeira
Nos últimos meses, um movimento significativo ganhou destaque e chamou a atenção da sociedade, da mídia e das redes sociais: a campanha contra a escala 6×1, liderada pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT). Pela primeira vez, o debate sobre a jornada de trabalho ocupa o centro das discussões e mobiliza amplamente a sociedade.
Há um incômodo na sociedade, que se expressa nos resultados de pesquisas em que a ampla maioria da população se declara favorável à redução da jornada de trabalho, especialmente entre os jovens, que se veem submetidos a jornadas excessivas, ao trabalho precário e sem vislumbrar uma perspectiva de futuro, além de não disporem de tempo para se dedicar a outras dimensões da vida.
Atualmente, 78,4 milhões de pessoas trabalham 40 horas ou mais, e mais de 20 milhões trabalham acima de 44 horas. Esse universo contempla trabalhadores e trabalhadoras formais, informais e por conta própria. Se considerarmos apenas aqueles e aquelas com carteira assinada, 80% trabalham em jornadas acima de 40 horas (entre 41 e 48 horas ou mais).
Atualmente, discute-se a semana de quatro dias em várias partes do mundo. Contudo, na maioria dos países da América Latina, os dados mostram que as horas trabalhadas em atividades remuneradas sofreram pouca ou nenhuma alteração nas últimas décadas, e as mudanças têm avançado em outra direção: jornadas mais diversificadas, descentralizadas e individualizadas.
No Brasil, as jornadas ainda são extensas, e há uma correlação direta entre a grande concentração de trabalhadores e trabalhadoras e a predominância de jornadas acima de 40 horas. Setores como o Comércio varejista têm percentuais elevados de pessoas que trabalham acima de 40 horas (93%), bem como a Construção civil (95%), a Agricultura (96%), a Indústria de calçados (96%) e a Indústria têxtil (95%).
Elaboração Própria
A escala de trabalho 6×1, que exige seis dias consecutivos de trabalho para apenas um dia de folga, tem gerado amplo debate no Brasil. Essa escala, aplicada principalmente em setores como Comércio e Serviços, representa um modelo extenuante que dificulta a conciliação entre vida pessoal e profissional. A sobrecarga da jornada afeta desproporcionalmente as mulheres, especialmente aquelas que acumulam trabalho remunerado e não remunerado, como cuidados com a família e tarefas domésticas (REBEF, 2024).
Esse modelo de trabalho também agrava o adoecimento físico e mental das pessoas que trabalham, contribuindo para transtornos como ansiedade e depressão. Em 2022, mais de 209 mil pessoas foram afastadas do trabalho no Brasil devido a problemas de saúde mental (CESIT, 2024).
A redução da jornada de trabalho é uma bandeira histórica da classe trabalhadora e encontra respaldo em movimentos globais que buscam melhorar a qualidade de vida das trabalhadoras e dos trabalhadores. Além disso, essa medida pode gerar novos postos de trabalho, contribuindo para a redução do desemprego e da informalidade.
A luta pelo fim da escala 6×1 é parte de uma pauta mais ampla pela redução da jornada de trabalho no Brasil. Esse debate, que já ganha força em outros países, não se limita a argumentos econômicos, mas busca resgatar a centralidade do trabalho como meio para uma vida digna e equilibrada. É essencial garantir que a redução da jornada seja acompanhada de medidas que promovam igualdade e justiça social, ampliando o tempo livre para todas as pessoas.
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As teorias de crescimento econômico desenvolvidas nos últimos 50 anos evidenciaram o papel do progresso tecnológico na elevação do bem-estar da sociedade. No longo prazo, serão os avanços em termos de produtividade que irão assegurar o desenvolvimento econômico e social. O uso adequado das tecnologias é o principal instrumento para ampliar a capacidade de geração de renda ao criar novas combinações de recursos e elevar a produtividade do trabalho. Os avanços obtidos pela humanidade desde a primeira revolução tecnológica nos permitem afirmar que, na atualidade, o tempo necessário para a reprodução social reduziu substancialmente. No entanto, os ganhos, ao invés de serem compartilhados com a sociedade, são utilizados para ampliar a acumulação de riqueza em mãos do capital.
Segundo Belluzzo (2003), ao analisar a economia brasileira, a redução da jornada de trabalho aumentaria o emprego e promoveria uma redistribuição favorável de renda. Mesmo numa situação de baixo crescimento, essa distribuição favoreceria a demanda e aumentaria a possibilidade de as empresas ocuparem melhor a capacidade instalada. O impacto seria ainda mais expressivo nos setores intensivos em mão de obra.
A redução da jornada de trabalho nos parece a resposta mais adequada diante de uma sociedade que tende a absorver cada vez menos trabalho vivo. As tecnologias sempre eliminaram empregos, mas esses eram absorvidos pelos novos investimentos. Atualmente, as novas fronteiras de investimento já não mobilizam a capacidade produtiva na intensidade necessária para gerar trabalho, além de dissolver padrões de trabalho tradicionalmente associados às ocupações. Reduzir o tempo de trabalho necessário é a única forma de enfrentar os problemas estruturais do trabalho no capitalismo.
Portanto, é fundamental recolocar a centralidade da redução da jornada de trabalho como forma de gerar e distribuir empregos para todas as pessoas. Os avanços tecnológicos permitem tecnicamente reduzir a jornada de trabalho e, como sempre ocorreu na história do capitalismo, a questão é política e ideológica.
Nesse sentido, o texto “Mais descanso do que trabalho” comete vários equívocos. O artigo concentra sua análise nos impactos negativos para os empregadores, negligenciando os benefícios sociais e psicológicos do regime de descanso para a classe trabalhadora. O bem-estar e a saúde mental não são abordados. Além disso, o autor sugere que a carga de descanso é o principal fator para a informalidade e a baixa produtividade no Brasil, mas não apresenta dados concretos que conectem diretamente o tempo de descanso à baixa produtividade.
A experiência recente não permite associar diretamente o tempo de descanso a uma suposta queda de produtividade, visto que países como a França e a Alemanha, que possuem leis trabalhistas robustas e bem regulamentadas, figuram entre as economias mais produtivas do mundo. Isso demonstra que o problema não está necessariamente na quantidade de descanso, mas na qualidade do ambiente de trabalho, na tecnologia disponível e na capacitação da força de trabalho.
O texto negligencia os benefícios sociais e psicológicos do descanso. Férias, feriados e pausas são essenciais para a saúde mental e o bem-estar dos(as) trabalhadores(as), o que, por sua vez, tem impacto positivo na produtividade. Estudos mostram que jornadas exaustivas podem levar ao esgotamento e reduzir a eficiência, enquanto regimes equilibrados de trabalho e descanso melhoram a qualidade do trabalho entregue.
A crítica ao impacto das leis trabalhistas na informalidade também é simplista. A informalidade no Brasil não se explica pelos custos trabalhistas, mas pelo excedente estrutural de força de trabalho, que estimula parte das empresas a contratar sem direitos.
Nesse sentido, além da redução generalizada da jornada de trabalho legal, atualmente em 44 horas por semana, a proposta de regimes como o 4×3 também merece ser analisada com seriedade sob uma perspectiva que vá além do custo imediato para as empresas. Há ganhos potenciais em termos de qualidade de vida, redução de afastamentos por doenças ocupacionais e até mesmo aumento do engajamento dos(as) trabalhadores(as). Esses aspectos devem ser considerados em um debate equilibrado sobre mudanças no regime de trabalho.
Referências:
BELLUZZO, L. G. Os desafios do governo Lula na área econômica. Revista Debate Sindical, edição nº 45, dez. 2002/jan.-fev. 2003.
CESIT. Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho. Jornada de trabalho na escala 6×1: a insustentabilidade dos argumentos econômicos e uma agenda a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras. 2024. Disponível em: https://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2024/11/NotaCesit.pdf.
REBEF. Rede Brasileira de Economia Feminista. Impacto da jornada reduzida: um olhar feminista sobre o trabalho e uso do tempo. 2024. Disponível em: https://www.cesit.net.br/impactos-da-jornada-reduzida-um-olhar-feminista-sobre-o-trabalho-e-uso-do-tempo/.
Marilane Teixeira – Economista, Doutora em Desenvolvimento Econômico e Social, professora e pesquisadora do CESIT- IE/UNICAMP
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