A denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros 33 envolvidos na tentativa de golpe de Estado foi recebida de forma positiva pelo jurista Lenio Streck. Em entrevista ao Portal Vermelho, o professor da Unisinos e da Universidade Estácio de Sá afirmou que a peça de 250 páginas é “bem feita e tecnicamente sólida” e constrói um panorama detalhado de todos os ataques à democracia. Segundo ele, a estrutura da acusação reforça a gravidade do caso e sustenta um cenário de condenação expressiva.
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“É uma anamnese de todos os ataques à democracia. Uma autópsia de todo o problema, desde o início”, afirmou.
Crime de empreendimento e o ataque à democracia
De acordo com Streck, a denúncia se diferencia por tratar de “crimes de empreendimento”, nos quais cada envolvido tem uma função dentro do esquema criminoso e atos isolados ganham sentido quando integrados a uma cadeia causal. “Um ato isolado pode parecer sem importância, mas quando inserido em uma cadeia de causalidade, torna-se parte do crime”, explica o jurista.
Ele destaca que o bem jurídico atacado neste caso é a democracia. “Desde 2021, houve uma escalada de atos que buscavam a desmoralização das urnas, atacar as instituições, intimidar com tanques, incitar violência e culminaram no 8 de janeiro como ponto final para a execução do golpe”, analisa. O plano incluía ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), reuniões com militares e movimentações golpistas em quartéis.
Tentativa de golpe como crime consumado
O jurista enfatizou a singularidade dos crimes de atentado ao Estado Democrático de Direito. Para o jurista, os crimes mais graves da denúncia são justamente os ligados ao golpe de Estado. “No Brasil, há apenas dois crimes em que a tentativa é equivalente ao crime consumado, e a tentativa de golpe é um deles”, ressalta. “Não importa se o golpe falhou: a tentativa já é o crime”.
Segundo Streck, os atos preparatórios e as etapas da tentativa já configuram a prática do crime. Um atentado contra a vida que falhou é uma tentativa de homicídio, mas um atentado contra a democracia já é o próprio crime. Streck citou exemplos da denúncia: “A minuta golpista, a reunião com embaixadores, a nota dos comandantes militares, os planos de eliminar adversários. Tudo isso forma um mosaico de ataques à democracia”.
Diante da robustez das provas, Streck avalia que Bolsonaro pode ser condenado a mais de 30 anos de prisão, agravada pelo envolvimento de militares e danos ao patrimônio público. “A soma dos crimes e a intensidade dos atos tornam essa possibilidade real”, afirma.
Defesa de Bolsonaro: “Trabalho duro” e “lendas urbanas”
Questionado sobre as estratégias da defesa, Streck foi categórico: “Não adianta tentar desqualificar a delação de Mauro Cid. Delação não é prova, é meio de prova. As evidências materiais — áudios, documentos, vídeos — existem independentemente”. Ele chama algumas dessas teses que se levantam para desqualificar a investigação de “lendas urbanas”.
Sobre possíveis teses jurídicas, ironizou falando numa improvável delação premiada: “A única saída seria Bolsonaro confessar tudo para reduzir a pena. Como advogado, respeito o trabalho de defesa, mas as provas são esmagadoras”.
Participação militar e impacto nas Forças Armadas
A presença de 23 militares na lista de denunciados também chama a atenção. Para Streck, isso demonstra que uma parcela das Forças Armadas abraçou o projeto golpista. “A narrativa de que o Exército foi legalista é frágil. A história ainda pode revelar outras participações”, opina.
Para ele, o caso exige mudanças estruturais: “É preciso reformar a formação militar, acabar com escolas que alimentam o golpismo. Vivemos sempre sob o fantasma de quarteladas”.
O jurista defende mudanças estruturais nas instituições militares para evitar novas ameaças à democracia. “É preciso reformar a formação dos militares e reavaliar cursos como os da Escola Superior de Guerra, para que o país não viva constantemente sob o fantasma do golpismo”, argumenta.
Novas denúncias no horizonte
Streck acredita que as outras denúncias contra Bolsonaro que surgiram e estão sendo investigadas, incluindo as relacionadas ao caso das fraudes em certificados de vacinação e venda ilegal de joias podem ampliar a pena. “Serão peças separadas, o que é correto para não atrapalhar o processo”, explica.
O jurista lembra que “no Brasil, golpes que dão certo não são crimes”, porque os adversários são mortos, mas destacou o caráter inédito do processo: “É a primeira vez que um presidente é julgado por tentar um golpe. Isso fortalece a democracia”.
Para Streck, o impacto das ações judiciais vai muito além da punição individual. “Um governo democrático precisa governar sem a constante ameaça de golpe. Esse processo pode ajudar a fortalecer a institucionalidade do Brasil”, conclui.
Para ele, o legado do caso será “mostrar que ataques à democracia não ficarão impunes”. “Isso já deveria ter ocorrido antes, mas antes tarde do que nunca”, conclui.