País acelera sua entrada no mercado global de semicondutores, atraindo multinacionais e investindo em inovação para disputar um setor bilionário


A atmosfera de incerteza dominava os corredores da Ceitec ao longo de 2021. Criada em 2008 como Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada, a empresa estatal, localizada na zona leste de Porto Alegre, foi incluída no Programa Nacional de Desestatização (PND) e estava à beira de ser desativada. Júlio Leão, então porta-voz da associação dos funcionários, foi o primeiro a ser demitido, em abril. Três meses depois, ocorreram demissões em massa. Dezenas de profissionais se viram desempregados e sem perspectivas de trabalho na região.

Parte da equipe da Ceitec conseguiu se realocar em empresas de outros estados ou em companhias estrangeiras, trabalhando remotamente. No entanto, Leão tinha um plano diferente. Com vasta experiência no setor, tendo trabalhado nos Estados Unidos e concluído seu doutorado no IMEC (Centro Interuniversitário de Microeletrônica), o principal instituto de pesquisa de semicondutores do mundo, na Bélgica, ele decidiu usar seu conhecimento para atrair empresas estrangeiras para Porto Alegre. Com a ajuda de dois colegas e de executivos de recrutamento, ele enviou uma proposta para 60 empresas globais. O documento destacava as qualificações de uma equipe de 30 profissionais e os custos de estabelecer um escritório na cidade.

As primeiras respostas não foram animadoras. Um dos CEOs respondeu com um frio “too far, too exotic” (“muito longe, muito exótico”). No entanto, após revisar os perfis da equipe de Leão no LinkedIn, o mesmo CEO pareceu reconsiderar. Seria uma mudança de perspectiva? Talvez valesse a pena explorar um lugar “tão distante e exótico” para contratar profissionais altamente qualificados.

Menos de um mês após esse primeiro contato, o CEO da EnSilica, uma multinacional britânica de semicondutores, fez uma oferta para 12 profissionais. Pouco mais de 45 dias depois, a Impinj, empresa sediada em Seattle (EUA), propôs contratar todos os 30 profissionais. Como 12 já haviam sido contratados pela EnSilica, a Impinj ficou com os demais.

Enquanto o Rio Grande do Sul perdia uma empresa estatal do setor, ganhava duas multinacionais. Tanto a EnSilica quanto a Impinj se estabeleceram no Parque Científico e Tecnológico da PUCRS (Tecnopuc) ainda em 2021. “Se tivéssemos 1 mil pessoas, em vez de 30, acredito que cerca de 15 empresas estariam aqui em Porto Alegre”, comenta Leão.

Esse caso ilustra o potencial do mercado de semicondutores, considerados insumos industriais estratégicos para a economia global do século 21. No livro A Guerra dos Chips, o especialista em história econômica Chris Miller argumenta que os chips – produto final da cadeia de semicondutores – são o novo petróleo, um recurso escasso do qual o mundo moderno depende cada vez mais. Presentes em praticamente todos os dispositivos eletrônicos, desde os mais simples até os mais avançados, como tags de pedágio e carros elétricos, os chips viram sua demanda aumentar com a pandemia, a transformação digital e os desafios globais, como a descarbonização e a transição energética. O mercado global de semicondutores faturou US$ 533 bilhões em 2023, segundo a consultoria Gartner, com expectativa de alcançar US$ 1,5 trilhão até o final da década.

Com tanto dinheiro e interesses em jogo, os semicondutores se tornaram uma questão geopolítica entre Estados Unidos e China – daí o título do livro de Miller, que alerta para um possível conflito armado causado por essa disputa. Cerca de 80% da produção mundial está concentrada no leste asiático, impulsionada pelo baixo custo de produção e por políticas econômicas focadas em ciência, tecnologia e inovação, como no Japão e na Coreia do Sul. Taiwan, onde está localizada a TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company), responde sozinha por 25% da produção global.

A instabilidade política na região, sob forte influência chinesa, preocupa os Estados Unidos. Em 2022, o presidente Joe Biden assinou o Chip Act, que prevê investimentos de US$ 52 bilhões (cerca de R$ 290 bilhões) para financiar empresas do setor e iniciativas de pesquisa e desenvolvimento, incluindo aplicações militares. Em 2024, a Intel anunciou um acordo de US$ 8,5 bilhões em financiamento direto do governo. Enquanto isso, a China destinou US$ 47,5 bilhões (cerca de R$ 260 bilhões) para a terceira fase do seu Fundo Nacional de Investimento na Indústria de Circuitos Integrados. A União Europeia também está investindo pesado, com uma fábrica da TSMC, no valor de US$ 10 bilhões (cerca de R$ 55 bilhões), em construção na Alemanha com apoio governamental.

Fábricas como as da TSMC e da Intel são extremamente caras, pois realizam a parte mais intensiva da cadeia produtiva de semicondutores – a fabricação dos chips propriamente ditos. No entanto, essa é uma exceção. A produção de chips é altamente segmentada. As design houses, por exemplo, focam no desenvolvimento de projetos de circuitos integrados. Outras empresas se especializam em montagem, encapsulamento e teste dos chips, processo conhecido como back-end. Além disso, apenas a TSMC, a Intel, a Samsung e a GlobalFoundries produzem chips no chamado estado da arte, com transistores de até 8 nanômetros (um nanômetro equivale a um bilionésimo de metro), o que oferece maior desempenho e menor consumo de energia.

Parceria com universidades

Semicondutores: saiba como o Brasil se movimenta para entrar na disputa global / Reprodução

Apesar do domínio asiático, o Brasil busca se inserir na cadeia global de semicondutores. Atualmente, o ecossistema nacional é composto principalmente por design houses – como a EnSilica, instalada no Tecnopuc – e empresas de teste e encapsulamento, como a HT Micron, sediada no Tecnosinos, em São Leopoldo (RS).

A escolha por parques científicos e tecnológicos vinculados a universidades não é casual. Nem é uma exclusividade brasileira. Por exemplo, a sede da EnSilica na Inglaterra está localizada em um parque tecnológico em Oxford, próximo a uma das maiores universidades do mundo.

“A empresa sempre buscou manter uma relação próxima com universidades para atrair talentos”, explica Leão. “Por isso, sugeri o Tecnopuc.”

A Escola Politécnica da PUCRS está no centro desse ecossistema de inovação. No setor de semicondutores, apenas um diploma não é suficiente. A proximidade da Politécnica com as empresas do Tecnopuc permite que os estudantes tenham contato com experiências reais do mercado, preparando-os para assumir posições em um setor carente de profissionais.

Para expandir essa realidade, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) promove cursos de formação em microeletrônica e semicondutores, em parceria com universidades e empresas, oferecendo bolsas de residência. O programa CI Inovador, por exemplo, abriu 250 vagas no início deste ano.

A Impinj – que possui um centro de desenvolvimento de circuitos integrados no Tecnopuc – deve receber alunos durante o período de residência, a fase final do programa federal, quando os selecionados integram equipes nas empresas. Antes disso, eles passam por um ano de capacitação teórica e vivências internacionais. Os alunos devem chegar à Impinj em 2025 para trabalhar no desenvolvimento de chips e no laboratório de testes, também localizado no Tecnopuc.

“Todos que se formaram nesses programas estão bem empregados. É uma iniciativa fundamental, a melhor forma de o governo contribuir com o mercado e atrair empresas para cá”, avalia Laurent Courcelle, do centro de desenvolvimento da Impinj no Brasil.

O desafio é manter a continuidade das formações e aprofundar a relação entre academia e setor produtivo. “Essa proximidade com a indústria traz casos reais e demandas atuais para as pesquisas dos alunos”, diz Fernando Moraes, professor da Escola Politécnica da PUCRS. Recentemente, Moraes orientou o mestrando Carlos Gabriel de Araujo Gewehr, que trabalhou em um projeto da EnSilica na área de criptografia pós-quântica. A pesquisa rendeu o prêmio de melhor dissertação de mestrado do Brasil pela SBMicro (Sociedade Brasileira de Microeletrônica). A tecnologia foi implementada em um circuito integrado e está em comercialização.

Caminhos para o Brasil

Em meio aos movimentos globais no setor de semicondutores, o Brasil deve investir na fabricação de chips? Para Adão Villaverde, professor de Gestão do Conhecimento e da Inovação da Escola Politécnica da PUCRS, a resposta é sim: investir nessa etapa da cadeia produtiva é estratégico do ponto de vista comercial, científico e geopolítico.

“Sem chip, não há transformação digital soberana. Economias que não dominam essa tecnologia serão, mais cedo ou mais tarde, superadas. Estamos em um momento único para o Brasil se aprofundar no tema.”

Villaverde vê potencial no mercado de “chips maduros”, na faixa dos 100 nanômetros. Ou seja, não se trata de competir com gigantes como Samsung e TSMC, que produzem chips estado da arte de 3 nanômetros. “O objetivo é focar em um mercado que esses players não disputam, representando 46% do mercado global”, explica. Nesse caso, uma renovação da Ceitec seria essencial, com um custo estimado em US$ 200 milhões (R$ 1,1 bilhão) – ou metade disso, se a empresa optar por uma nova rota tecnológica em estudo. Vale lembrar que, após entrar no PND em 2021, a Ceitec teve seu processo de liquidação revertido em 2023, mas ainda carece de recursos para retomar a produção.

Enquanto isso, o governo federal sancionou, em setembro de 2024, uma lei que criou o Programa Brasil Semicondutores (Brasil Semicon) e ampliou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico à Indústria de Semicondutores (Padis). A medida prorroga e amplia incentivos fiscais para empresas, com R$ 7 bilhões por ano, totalizando R$ 21 bilhões até 2026, para estimular pesquisa e inovação nas cadeias de chips e eletroeletrônicos. Uma alternativa é fortalecer as etapas de design, teste e encapsulamento, áreas nas quais o Brasil já possui expertise e que não exigem investimentos tão elevados quanto uma fábrica.

A Nvidia, uma das empresas mais destacadas no mundo dos chips, não possui fábricas – no jargão do setor, é uma fabless. Seu valor de mercado, de US$ 2,86 trilhões (quase R$ 16 trilhões, mais que o PIB brasileiro em 2023), vem do desenvolvimento e da propried intelectual de chips para computação gráfica e inteligência artificial. Guardadas as proporções, a EnSilica planeja seguir um caminho semelhante, tornando-se uma fabless com controle sobre a propried intelectual e a comercialização de seus chips. Nesse cenário, Júlio Leão afirma que o escritório da EnSilica no Brasil cresce mais rápido que o da Inglaterra, graças à qualidade dos engenheiros locais.

“Em 2021, quando viemos para o Tecnopuc, disse que precisaríamos de espaço para 12 pessoas, mas que cresceríamos para 30. Hoje, nossa sala tem apenas dois lugares vazios, e a empresa deve expandir para 32 funcionários ainda este ano”, comemora.


Com informações da Revista da PUCRS, lançada no mês de dezembro de 2024. A produção foi cocriada com a República Conteúdo e a edição completa está disponível para download neste link.

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Last Update: 23/02/2025