Fatos e bullshits
Nova ordem global e inteligência artificial importam mais que as agruras dos líderes políticos
Por Antônio Machado*
Neste tempo de evolução da inteligência artificial, engenho mais revolucionário do que foi a energia elétrica quase 200 anos atrás, da quebra de todos os paradigmas do pós-guerra por Donald Trump, inaugurando uma nova ordem global de oligarcas e três autocratas – ele mesmo, o russo Putin e o chinês Xi -, de mudanças climáticas, não falta o que mereça a atenção e discussões profundas.
Não há mais o mundo que conhecemos. Mas, no Brasil, como se tudo isso fosse perfumaria de intelectuais ou devaneios de gente sem ter o que fazer, é preocupante os quadros políticos e a imprensa estarem entretidos, em tempo integral, pelas denúncias contra um ex-presidente e os esforços do presidente da vez para elevar sua taxa de aprovação no eleitorado. Não tivessem ambos sido eleitos e poderíamos dizer que não temos nada a ver com as suas agruras.
O que nos diz respeito são os exercícios, por agora, quando há, extremamente superficiais, sobre como podemos recuperar o modelo de tecnologia de produção em massa (perdido desde os anos 1980) e aproveitar as oportunidades e encarar os desafios da nova ordem.
O mundo multipolar, supervisionado por regramentos globais das Nações Unidas (ONU), do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Organização Mundial do Comércio (OMC), entre outros, já era pouco respeitado, e com Trump, adepto de negociações bilaterais, quando não impostas inclusive a países amigos dos EUA, não será cutucando o que chamam de “estadunidenses” que se vai a lugar algum.
Autocratas têm viés narcisista, crescem nos confrontos, vendo-se desafiados como “homens Marlboro”, num caso, czares ressurgentes, noutro, “senhores infalíveis” além de ressentidos das humilhações das potências imperiais do passado. O traço comum a eles todos é a aversão aos valores do Ocidente, à democracia representativa, e a predileção por séquitos de oligarcas – lobbies de endinheirados sem compromisso que não sejam os próprios e os do “grande líder”.
Neste torvelinho de interesses opostos, é difícil saber para onde vai o mundo. Certo é que não será igual, não por Trump ou Putin, mas pelas megatendências ditadas por fatores alheios a eles, como o envelhecimento demográfico, a digitalização em massa, a mudança climática e suas sequelas catastróficas, a inteligência artificial aplicada na prática e ainda incipiente. Isso é que será definidor.
Reviravolta histórica
Em 2018, o falecido Henry Kissinger, ex-formulador das políticas externas de governos republicanos e ouvido até o fim da vida por líderes como Xi Jinping, disse que “Trump pode ser uma dessas figuras na história que aparecem de tempos em tempos para marcar o fim de uma era e forçá-la a desistir de suas antigas pretensões”.
Se isso não era verdade em 2018, certamente é agora, segundo um longo ensaio do analista de geopolítica N.S. Lyons. “Acredito que o que estamos vendo hoje é o fim de uma era, uma reviravolta histórica do mundo como o conhecíamos, e que a importância e as implicações completas ainda não nos atingiram. Donald Trump marca o fim tardio do Longo Século XX.” Tem algo do filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937), que escreveu na véspera da 2ª Guerra:
“A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.
Trump terá dois anos para se consolidar. Em 2026 haverá eleições de meio de mandato, quando será renovada a totalidade da Câmara dos EUA. Já por agora há ruídos. Neste fim de semana dissidentes do GOP, apelido do Partido Republicano, reúnem-se em Washington para discutir a criação de um Partido Conservador, entendendo Trump e seu movimento MAGA como franjas fascistas, ou se organizar como um bloco para disputar as convenções primárias em 2026.
Populismo mambembe
Não há prenúncio de tempos tranquilos. Em artigo esta semana, a revista Nikkei afirma que “a China pode já ter vencido a corrida global. O pragmatismo e flexibilidade de Pequim são frequentemente favorecidos em detrimento dos ideais ocidentais”.
O domínio industrial chinês é incontestável. Contra ele é que o governo Trump ergue tarifas. Não é bem protecionismo, já que se protege a produção local, que boa parte não mais se dá nos EUA. As tarifas são para forçar a volta da produção de multinacionais dos EUA em outros países para o mercado doméstico.
Isso está em curso, levando a China a desviar sua enorme produção de bens industriais para a Europa e países como Brasil, onde a BYD detém seu terceiro maior mercado automotivo no mundo. Fustigada, a indústria nacional já encolhida está cada vez mais espremida.
O fato é que nos últimos 40 anos o país passou por uma transição notável de uma economia industrial dinâmica, maior que a de toda a Ásia, exceto Japão, para uma economia de serviços improdutiva e de baixo crescimento, segundo Jean Van de Walle, da Sycamore Capital.
Foi uma tragédia. De 1950 a 1980, o PIB cresceu 7,1% ao ano, um recorde mundial. Desde então, desacelerou para miúdos 2,1% ao ano. Nos último triênio, o PIB cresceu à média anual de 3%, mas graças a gastos fiscais deficitários, que incham a dívida e engravidam a taxa de juro, hoje o maior obstáculo para empinar o investimento produtivo. O populismo fiscal mambembe esvaziou o desenvolvimento e desafia o establishment político, financeiro e empresarial.
Faltam coragem e decisão
Em vez das medidas caça-votos em negociação entre o governo e os partidos majoritários na Câmara e no Senado, o que exige atenção, com atraso de 20 anos, são os ítens da expansão orgânica do PIB: trabalho, capital e produtividade total dos fatores (PTF).
Estudo de Van de Walle para períodos de dez anos destaca o colapso da PTF como sequela tanto da desindustrialização quanto da ascensão das commodities de baixo valor agregado e das atividades de serviços.
Com a cambalhota de Trump, traindo a Ucrânia e a Europa para se amasiar com a Rússia de Putin, a instabilidade geopolítica será a marca no curto prazo. É oportunidade para o Brasil, com recursos naturais abundantes e um mercado de consumo de massa incipiente e que poderia facilmente dobrar de tamanho.
Isso faz da reforma dos fatores que oneram o crédito e dificultam o investimento a grande prioridade. Mais para o centro, que abraça o reformismo, que para os grupos reféns de visões passadistas e de agendas identitárias divisivas numa sociedade conservadora.
Planos sobre o que fazer abundam. Faltam coragem e senso de oportunidade.
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