Quando Vincent Bevins desembarcou no Brasil, em 2010, como correspondente do Los Angeles Times, esperava narrar ao mundo o auge de um país em plena ascensão econômica. Em vez disso, testemunhou de perto o colapso daquele sonho: dos protestos de junho de 2013, impulsionados pelo Movimento Passe Livre (MPL), à virada brusca que ocorreu quando a repressão policial — inicialmente apoiada pela grande mídia — acabou revelando sua violência diante das câmeras e abriu espaço para grupos conservadores. Ali nasceu a semente de uma extrema-direita que, alguns anos depois, impulsionaria o impeachment de Dilma Rousseff e endossaria a candidatura de Jair Bolsonaro.

Há controvérsias sobre o momento em que a direita se apropriou das manifestações: alguns apontam para a saída do MPL das ruas; outros acreditam que o fenômeno, uma vez disparado, seria inevitável. Em A Década da Revolução Perdida (Boitempo. 344 páginas, 93 reais), Bevins investiga as raízes e os desfechos desse ciclo global de protestos — não só no Brasil, mas em outros onze países —, reunindo mais de 200 depoimentos para entender por que manifestações movidas por insatisfação popular acabaram beneficiando forças políticas opostas ao impulso inicial.

Em entrevista a CartaCapital, o jornalista americano explica como a falta de lideranças claras, somada à dinâmica digital, serviu de trampolim para reviravoltas na política contemporânea.

Confira os destaques a seguir.

CartaCapital: Seu livro sugere que, apesar das particularidades de cada país, esses protestos globais compartilham o fato de que suas revoluções pretendidas inicialmente nunca se concretizaram. Por que isso aconteceu?

Vincent Bevins: O que varia bastante entre os países são os contextos nacionais, econômicos e políticos. No entanto, o que percebi como um elemento comum foi a estrutura organizacional e as táticas utilizadas nesses protestos. Esses movimentos eram geralmente manifestações de massa, aparentemente espontâneas, coordenadas digitalmente, com um papel fundamental das redes sociais, sem lideranças definidas, Horizontais e descentralizadas e ocupando espaços públicos como praças e avenidas.

Essas características facilitaram o crescimento rápido dos protestos, mas também tornaram difícil transformar suas demandas em mudanças concretas e duradouras. Esse vácuo de liderança abriu espaço para que outros atores, muitas vezes conservadores, tomassem o protagonismo.

No Brasil, vimos isso acontecer com a rejeição à presença de partidos políticos nas manifestações. Houve episódios emblemáticos, como a queima de bandeiras do PT e outros partidos de esquerda. Esse sentimento de criminalização da política tradicional foi uma chave importante para entender a ascensão da extrema-direita no país.

CartaCapital: Esse movimento de rejeição à política tradicional ganhou força e marcou o Brasil nos anos seguintes. Foi também ocorreu em outros países, ou é uma característica particular do Brasil?

Vincent Bevins: Falei bastante com o Movimento Passe Livre (MPL), Fernando Haddad e outros atores para este livro. O MPL sempre foi um grupo apartidário, mas seus integrantes relatam terem ficado surpresos ao ver novas pessoas nas ruas confundindo, talvez de forma proposital, uma postura apartidária com uma postura explicitamente antipartidária. Basta lembrar que, no dia do ataque registrado no YouTube, Jair Bolsonaro usava uma camiseta com a inscrição “Partido ao Brasil”, evidenciando essa rejeição.

Essa ideia de rejeitar todos os partidos para se colocar como “a política pura” tem uma história ligada ao fascismo. Agora, sim, esse fenômeno ocorreu em outros países, mas não em todos. Na Ucrânia, por exemplo, muitos dos que participaram da Revolta da Praça Maidan em 2013 também haviam participado da Revolução Laranja anos antes. Esse movimento também rejeitou partidos tradicionais, buscando ser mais horizontal e espontâneo. Em Hong Kong, houve uma rejeição ainda mais agressiva às poucas organizações políticas existentes, e falei com pessoas que foram expulsas das ruas por grupos antipolíticos, de maneira semelhante ao que vi acontecer na Avenida Paulista.

CC: O que movia as pessoas a protestarem? As entrevistas revelaram alguma insatisfação específica ou um sentimento geral de frustração socioeconômica?

VB: Praticamente toda a população tem alguma reivindicação que poderia ser levada às ruas – exceto os oligarcas que controlam a internet hoje em dia. O ponto crítico é quando esses sentimentos se traduzem em manifestações massivas. Minha análise parte do entendimento de que há uma crise de representação política.

O que vimos ao longo da década passada foi que, na maioria dos casos, foi um episódio de repressão policial que viralizou e levou grandes massas às ruas. Isso aconteceu no Egito em 2011, na Ucrânia em 2013 e no Brasil também. No caso brasileiro, os ataques da Polícia Militar atingiram não apenas manifestantes, mas também jornalistas de grandes mídias, o que ajudou a gerar choque na sociedade e aumentar a adesão aos protestos.

Essas manifestações geraram momentos de euforia vitoriosa, mas quase sempre os grupos que as iniciaram não foram os que se beneficiaram delas. Sempre houve outro ator que entrou na disputa e aproveitou a oportunidade — seja a elite nacional, forças reacionárias, intervenções estrangeiras ou, em alguns casos, aliados dos grupos iniciais. No Chile, por exemplo, Gabriel Boric alcançou o poder vindo do campo progressista, mas em outros países foram as forças conservadoras que se fortaleceram.

CC: Há quem enxergue tudo isso como uma articulação internacional, com financiamento de grupos, como o MBL no Brasil. Qual foi, de fato, o papel de agências estrangeiras nessa história?

VB: Meu primeiro livro, O Método de Jacarta, trata da construção de um sistema global imperialista com os Estados Unidos como poder hegemônico. No segundo livro, examino a relação entre as manifestações e esse sistema global. No entanto, acho que uma teoria robusta de imperialismo não precisa afirmar que tudo foi planejado pelas potências estrangeiras. O que percebo é que forças imperialistas eficazes também reagem a oportunidades.

Viajei para 12 países para contar essas histórias, e, quando há evidências de financiamento de grupos iniciais, incluo isso no livro. Hong Kong e Ucrânia, por exemplo, tiveram evidências concretas desse apoio. No entanto, em Hong Kong, os manifestantes perderam. Se houvesse um plano concreto para derrubar a República Popular da China, claramente não funcionou. Alguns ativistas de Hong Kong me disseram depois que se sentiram usados, acreditando que os EUA nunca tiveram a intenção de garantir uma vitória real, mas apenas de causar problemas para Pequim.

O que vi como um fator mais importante ao longo da década foram reações oportunistas. Os EUA e outras potências sempre acompanham eventos globais e, quando aparece uma oportunidade, reagem. Durante a Primavera Árabe, por exemplo, Arábia Saudita e outros atores regionais se beneficiaram, mas isso não significa que tivessem planejado tudo de antemão. O mesmo ocorreu com os protestos na Tunísia e na Líbia, que terminaram em intervenção militar da OTAN e destruição do Estado líbio.

Nos EUA, houve um momento de surpresa com a Primavera Árabe. O governo Obama, inicialmente perdido, terminou apoiando contrarrevoluções em alguns países. No Egito, houve algo semelhante ao que ocorreu no Brasil: grupos inspirados no MPL apareceram na cena, fingindo ser apartidários, mas com financiamento externo e um projeto político muito concreto, que beneficiou elites locais e interesses estrangeiros.

CC: Inicialmente, o PT acreditava que as manifestações fossem um reflexo do desejo por melhorias nos serviços públicos. Porém, em poucos anos, o Brasil seguiu na direção contrária. Que erros de avaliação do campo progressista contribuíram para a guinada à direita?

Vincent Bevins: A resposta inicial da presidente Dilma foi essa: as pessoas querem mais. Os produtos chegaram dentro de casa, mas agora elas querem melhores serviços públicos. Esse era o entendimento. Mas algumas coisas estranhas aconteceram nas semanas seguintes. Em 13 de junho de 2013, Dilma perdeu 30 pontos de aprovação. Eu perguntei para muitas pessoas e nunca encontrei uma explicação empírica clara para essa queda abrupta. Nada daquilo estava ligado diretamente ao poder executivo.

O que houve foi uma cobertura midiática intensa, focada em tudo que os brasileiros queriam mudar no país. Talvez fosse legítimo convocar a população para apresentar reivindicações, mas, concretamente, nada aconteceu no plano político. Nos bastidores, houve discussões sobre uma reforma política, mas a forte reação da direita levou o governo a recuar. Agora, teria sido possível defendê-la sem sofrer um golpe? Não sei. Mas Dilma sofreu um golpe de qualquer forma, mesmo sem implementá-la.

A Lava Jato também cristalizou esse sentimento de criminalização da política. O PT tentou se mostrar alinhado ao discurso anticorrupção, mas essa estratégia se mostrou ineficaz. A eleição de 2014 foi apertada e muito contestada pelo PSDB. Depois da derrota de Aécio Neves, começou a circulação da narrativa de que talvez o pleito não tivesse sido legítimo. Foi a primeira vez desde 1988 que isso ocorreu. Em 2015, a crise econômica e a nova onda de manifestações, organizadas por grupos financiados por elites brasileiras e estrangeiras, abriram caminho para o impeachment de Dilma em 2016.

CC: Desde 2013, parece haver um receio das esquerdas de voltar às ruas. Certo temor de que uma nova onda de protestos desestabilize o governo de turno. Como superar esse trauma?

Vincent Bevins: Esse medo é compreensível, mas precisa ser superado no longo prazo. No Brasil, a democracia não foi destruída como em outros países, e isso se deve à ação de organizações bem estruturadas, como PT, CUT e MST.

A extrema direita, no entanto, se sedimentou na política institucional, ocupando o espaço que antes pertencia ao PSDB. Talvez golpes não sejam mais necessários, porque não vivemos mais tempos normais. No futuro, também não podemos aceitar que a internet continue dominada por forças reacionárias. Hoje sabemos que grandes plataformas são controladas por bilionários com interesses políticos claros, e isso favorece conteúdos de extrema-direita.

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Last Update: 22/02/2025