As imagens surpreenderam até mesmo os cariocas acostumados a conviver com episódios cinematográficos de violência urbana. Na tentativa de prender Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, traficante mais procurado do Rio de Janeiro, uma operação policial com carros blindados e helicópteros transformou as duas principais vias expressas da cidade em um cenário de guerra. Explosões de granadas e rajadas de fuzis e metralhadoras ecoaram pela Avenida Brasil e pela Linha Vermelha, em meio ao desespero de motoristas e passageiros a caminho do trabalho. Para completar o trágico enredo, as ruas dos bairros que circundam as cinco comunidades que compõem o Complexo de Israel, na Zona Norte do Rio, se transformaram em bunkers do Terceiro Comando Puro, a facção de Peixão, com direito a fossos e barricadas no asfalto em ruas de grande circulação e utilização das lajes de residências para efetuar disparos de artilharia antiaérea contra a PM.
A impressionante estratégia de “contenção” erguida nas ruas de Parada de Lucas, Vigário Geral e Brás de Pina foi bem-sucedida e permitiu que o traficante fugisse sem maiores atropelos. O domínio da facção sobre bairros inteiros colocou as autoridades na defensiva diante da incapacidade de enfrentamento à “tropa do Peixão”. Curiosamente, tanto o governador bolsonarista Cláudio Castro, do PL, quanto o prefeito lulista Eduardo Paes, do PSD, escolheram apontar como origem de todos os males a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, mais conhecida como ADPF das Favelas, apresentada em agosto de 2020 pelo PSB com o objetivo de diminuir a letalidade policial no Rio. Inicialmente acolhida pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, e com retomada da votação em plenário aguardada para os próximos dias, a ADPF impôs exigências e restrições às operações policiais nas comunidades do estado.
Fachin não proibiu operações policiais, apenas exigiu um protocolo para reduzir a letalidade
Autor de um plano de redução da letalidade policial que foi aceito, mas considerado insuficiente por Fachin, o governador do Rio lidera o pelotão dos descontentes: “A ADPF impõe limitações à polícia e aumenta o poder da criminalidade. Estamos cumprindo rigorosamente as determinações do STF, e o resultado é a expansão territorial do crime”. O fim das restrições também foi pedido pelo prefeito, que afirmou ser o Rio “um resort para delinquentes”. A prefeitura anunciou ter solicitado sua participação como amicus curiae no julgamento do STF, sob a alegação de que a ADPF tem afetado o ordenamento urbano da cidade: “O que está acontecendo não é admissível. Parada de Lucas não é comunidade, é um bairro. Brás de Pina também”, afirmou Paes, que apresentou aos vereadores cariocas, na segunda-feira 17, seu projeto de criação de uma guarda municipal armada.
Na linha de frente contra a ADPF figura ainda o senador Flávio Bolsonaro, do PL, que acaba de assumir a presidência da Comissão de Segurança Pública do Senado e promete trabalhar para derrubar a decisão do STF: “Os marginais no Rio quadruplicaram sua força, ampliaram o controle sobre os territórios que dominam e estão usando armas de guerra contra os nossos policiais”. Os governistas afirmam estar prontos para o embate: “Como delegado, sempre defendi que o policial não deve ser um violador de direitos, e sim o primeiro garantidor. Qualquer política pública que assegure que os direitos dos cidadãos não serão violados, e sim garantidos, será sempre bem-vinda”, diz o senador Fabiano Contarato, do PT.
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STF. Fachin defende o uso de câmeras corporais e veta disparos feitos de helicópteros – Imagem: Arquivo/STF
Para Contarato, só será possível combater as organizações criminosas no Rio e em todo o Brasil com medidas de inteligência e coordenação: “Defendo a iniciativa do governo federal de fortalecer e promover maior integração entre as forças de segurança. Hoje, elas não se comunicam direito. Protocolos essenciais, como boletins de ocorrência e mandados de prisão, não são sequer padronizados. Precisamos trabalhar juntos, de forma uníssona. O crime não pode ser mais organizado que o Estado”.
Antes da interrupção da votação em plenário pelo presidente do STF, Luiz Roberto Barroso, o ministro Fachin votou pela manutenção das regras para operações policiais nas favelas do Rio e propôs novas medidas. Entre as exigências mantidas estão a obrigatoriedade do uso de câmeras corporais, a proibição de disparos feitos por helicópteros, a determinação de que buscas domiciliares sejam efetuadas somente durante o dia e a vedação do uso de escolas ou postos de saúde das comunidades como bases operacionais. Entre as novas medidas propostas figuram a formação de um comitê para acompanhar as operações policiais, a apresentação de relatórios ao fim de cada uma delas e a criação de um programa de assistência à saúde mental dos agentes de segurança: “A ADPF é uma oportunidade de aprimoramento da atividade policial e de seu controle externo com transparência, participação democrática e prestação de contas”, disse Fachin.
Integrante do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, o sociólogo Ignacio Cano lembra que a ADPF 635 é uma resposta a uma obrigação legal do Estado: “A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Nova Brasília, ocorrido em 1994, obriga o Rio a criar planos para reduzir a letalidade policial”. Para Cano, a redução das incursões e, consequentemente, da letalidade policial deveria ser comemorada, não criticada pelas autoridades: “Claro que, com a ADPF, há uma limitação, pois justamente o que se pretende é que o trabalho policial seja menos letal. A polícia do Rio tem uma letalidade elevadíssima, e várias mortes são execuções sumárias, as pessoas poderiam ter sido presas e não mortas. Diminuir essa letalidade policial é uma necessidade histórica, e isso, obviamente, significa uma redução do espaço de atuação da polícia”.
As mortes por intervenções policiais caíram 60% desde 2019
Cano ressalta que a corrupção policial está na raiz da letalidade: “Entrar a cada três meses para trocar tiros só fortalece o arrego, cria uma insegurança muito grande nas comunidades e, certamente, não enfraquece o tráfico”. Dizer que Peixão conseguiu escapar por causa da ADPF é apenas retórica política, acrescenta. “Por um lado, o governo Castro diz que está cumprindo a determinação judicial e, em troca disso, reclama maior liberdade de ação para as polícias. Por outro lado, faz grandes operações com muitas mortes para satisfazer o lado do ‘bandido bom é bandido morto’. Então, ele está operando simultaneamente com duas audiências.”
Integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o pesquisador Daniel Cerqueira afirma que Castro e Paes fazem “proselitismo barato” para camuflar a incompetência de seus governos: “A decisão de Fachin não proibiu operações nas favelas. Apenas reafirmou algo que é absolutamente trivial em qualquer Estado Democrático de Direito, elas devem ter um planejamento prévio e o uso da força letal precisa sofrer o escrutínio das instituições do Estado e da sociedade civil. Não se pode tolerar uma ‘licença para matar’”. Cerqueira lembra que o FBSP divulgou um estudo mostrando que, desde a entrada em vigor da ADPF 635, houve uma queda significativa das mortes por intervenção policial: “Também caíram os homicídios dolosos, os roubos de veículos, roubos de carga e roubos de rua. Então, é uma mentira deslavada essa ideia de que a ADPF engessou as polícias”.
Coordenador do Grupo de Estudos sobre Novos Ilegalismos da UFF, Daniel Hirata afirma que as operações policiais são necessárias, mas têm efeito limitado: “Não adianta trocar tiros sem também atacar as bases econômicas e políticas do crime organizado. A segurança pública não é um jogo de forças entre policiais e criminosos, ela deve basear-se em órgãos bem estruturados, que atuem de forma inteligente”. Hirata classifica o voto de Fachin como muito bom: “Reafirmou as cautelares que vêm tornando as operações mais seguras. Houve uma redução de 60% das mortes por intervenções policiais, que passaram de 1.814, em 2019, para 699 no ano passado. E os indicadores criminais não aumentaram durante esse período”.
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Convergência. Cláudio Castro e Flávio Bolsonaro uniram-se na oposição à ADPF das Favelas. O prefeito Eduardo Paes quer uma guarda municipal armada – Imagem: Rogério Santana/GOVRJ e Arquivo/GMRJ
As autoridades locais parecem ignorar os dados e argumentos. Secretário de Segurança Pública do Rio, Victor Cesar dos Santos afirma que a ADPF das Favelas “é um retrocesso” e gerou insegurança jurídica para as ações do governo estadual. Ele criticou a exigência de excepcionalidade para a autorização de operações: “É um conceito jurídico indeterminado. Como vou determinar o que é excepcional? Para mim, excepcionalidade é dizer que uma região pertence a uma organização criminosa”. Presidente da OAB do Rio de Janeiro, a advogada Ana Tereza Basilio lembra ao secretário que “o Direito é repleto de conceitos indeterminados, como moralidade, transparência e eficiência, dentre outros, o que não impede o Poder Judiciário de proferir decisões e definir o alcance de cada um desses vocábulos”.
A OAB do Rio, explica Basilio, entende que “a política de segurança cabe ao Executivo, democraticamente eleito a cada quatro anos, e não ao Judiciário”, mas diz que o MP deve denunciar os excessos. “Sabemos que é um desafio complexo equilibrar ações de prevenção da violência com o dever de garantir os direitos humanos e as liberdades fundamentais, mas esse desafio deve ser enfrentado e cobrado das autoridades públicas.”
Deputado federal pelo PSOL, Tarcísio Motta diz que a ADPF das Favelas nunca impediu a presença da polícia nos territórios: “Está sendo usada como desculpa para mascarar a incompetência da gestão da segurança pública, que promove um extermínio da juventude negra, conduzindo operações midiáticas sem qualquer relação com indicadores efetivos de combate à criminalidade”. O parlamentar afirma que a narrativa de tolerância zero do governo Castro leva à normalização das execuções sumárias, mas não há incômodo aparente com o tráfico de armas realizado, muitas vezes, com a participação de agentes de Estado: “Essa imbricação entre o legal e o ilegal cria redes milicianas e está na origem dessa lógica bélica”. •
Publicado na edição n° 1350 de CartaCapital, em 26 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Acharam um bode’