No sábado 15, após dias de impasse, o Hamas devolveu a Israel três reféns e recebeu de volta 369 prisioneiros palestinos. A troca garantiu, por ora, a continuidade do acordo de cessar-fogo desenhado pela equipe do ex-presidente dos EUA, Joe Biden, mas colocado em xeque pelo sucessor Donald Trump, deslumbrado com a oportunidade de fazer muito dinheiro por meio da especulação imobiliária ao expulsar os 2 milhões de moradores do enclave e transformar a região em uma “riviera” comandada por construtoras norte-americanas. Na segunda-feira 17, o novo líder do Hamas, Khalil al-Hayya, prometeu acelerar o processo e liberar no sábado 22 os últimos seis reféns vivos, além de quatro corpos, o que permitiria o início da segunda fase do acordo, com a retirada das tropas israelenses da Faixa.
O frágil cessar-fogo não é o único problema palestino. Enquanto o balé da troca de reféns por prisioneiros prossegue, soldados israelenses e colonos judeus mantêm uma contínua destruição e fragmentação da Cisjordânia, no contexto do imbricamento entre a política externa de Trump e a dinâmica de violência ordenada por Tel-Aviv. Segundo Rula Jamal, advogada de direitos humanos e codiretora do Instituto Palestino para Diplomacia Pública, Israel conta com o apoio dos aliados, em especial de Washington, para escapar de qualquer punição ou reprimenda internacional. “Agora, com a Presidência de Trump, que partilha muitos interesses econômicos com o projeto colonial israelense, o governo Netanyahu sente-se seguro para continuar com seus crimes de guerra no resto da Palestina.”
O relatório sobre Gaza publicado pela ONU na terça-feira 18 contabiliza 48,3 mil mortos e 111,7 mil feridos desde o início do conflito. Dados conservadores revelados pela revista Lancet projetam 250 mil mortes, derivadas não só dos ataques militares, mas da falta de cuidados médicos e fome, cerca de 10% da população local. Outro 1 milhão de palestinos corre o risco de contrair doenças em consequência das condições insalubres em um território cuja infraestrutura foi pulverizada pelos bombardeios.
Especialistas da Oxfam, ONG dedicada a estudos sobre a desigualdade, relatam que a situação dos moradores de Gaza melhorou após o acordo de cessar-fogo. A autorização para a entrada de combustível e de carros-pipa permite a operação de “instalações sanitárias e de água”. A organização alerta, no entanto, para o fato de parte dos distritos ao norte de Gaza e Rafah, para onde 700 mil deslocados estão a caminho, permanecer em situação crítica. Os ataques israelenses destruíram 1,7 mil quilômetros de redes de distribuição de água e tratamento sanitário. Hoje, “menos de 7% dos níveis de água pré-conflito estão disponíveis, aumentando a chance de doenças se espalharem por vias aéreas”. A Oxfam cita ainda um dado da Organização Mundial da Saúde: 88% das amostras ambientais analisadas de diferentes partes do território apontaram a contaminação por pólio.
Colonos judeus continuam a ocupar novas áreas
O governo do Egito prepara um projeto de reconstrução de Gaza de cinco anos, que deve ser apresentado em breve durante reunião em Riad, na Arábia Saudita, a representantes do Qatar, Emirados Árabes, Jordânia e do país anfitrião. A ideia é ter pronta uma versão final até o encontro da Conferência Árabe, marcada para o dia 27 no Cairo.
Enquanto isso, a Cisjordânia assiste a um avanço de colonos israelenses. Basil Farraj, professor na Universidade de Birzeit e diretor do Instituto Ibrahim Abu Lughod de Estudos Internacionais, afirma: “Observamos uma escalada da violência desde 7 de outubro, com tentativas de deslocar palestinos. Nos campos de refugiados, centenas de milhares foram forçosamente expulsos. Particularmente em Jenin e Tulkarem, ao norte, as forças israelenses demolem casas e destroem a infraestrutura e as estradas numa tentativa de expulsá-los dos campos e, em última instância, da Palestina”.
A organização de direitos humanitários AlHaq identificou uma intensificação desse processo a partir de 21 de janeiro, primeiro dia efetivo do governo Trump nos Estados Unidos, com a operação “Iron Wall” (Muralha de Ferro). Os ataques militares tinham como alvo o distrito de Jenin. “A operação envolveu a imposição de um total cerco ao campo de refugiados, o uso de extensa força militar, incluindo soldados da ocupação israelense e atiradores de elite, o recurso a ataques aéreos e drones de reconhecimento”, registrou a organização.
A ONU expressou preocupação em comunicado de 10 de fevereiro em relação aos “deslocamentos em massa sem precedentes na Cisjordânia”. A UNRWA, agência das Nações Unidas para o atendimento aos palestinos, contabilizou a expulsão de 40 mil moradores de áreas do norte do território devido aos ataques israelenses. “O Escritório de Direitos Humanos da ONU recebeu relatos diários de residentes deslocados, descrevendo um padrão em que eles são tirados de suas casas por forças de segurança israelenses e drones sob ameaça de violência. Eles então são forçados a sair de suas cidades por atiradores de elite posicionados nos topos dos prédios ao redor.”
Jamal conecta as duas frentes israelenses. “A destruição total de Gaza por Israel foi intencional para atingir muitos dos seus objetivos coloniais. Ou seja, esvaziar o território, se apropriar de mais terras e permitir a construção de mais colônias. O que acontece na Cisjordânia há quase um mês é, de fato, a continuação do que começou em Gaza.” A responsabilização de Israel, acredita, dependeria de uma mobilização internacional, uma “ação sistemática de comunicação e relações transversais para, no longo prazo, acabar com a opressão não só dos palestinos, mas de outros povos, em muitos casos diretamente ligados às tecnologias e armas desenvolvidas por Israel”. •
Publicado na edição n° 1350 de CartaCapital, em 26 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cessar-fogo para quem?’