Deus!, ó Deus!,onde estás que não respondes?
Em que mundo, em que estrela tu te escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito, 
Que embalde desde então corre o infinito… 
Onde estás, Senhor Deus?… 
Castro Alves – Vozes D’África

 

Nestes dias de trombadas do agente laranja – as “trumpadas” – é recomendável não tirar o olho da sucessão de atentados trumpistas às instituições republicanas. Pensei em escrever liberais-republicanas. Recuei porque, no momento atual, o pretendido liberalismo político-econômico se transmuta em nazifascismo.

Veja o caro leitor que Elon Musk e os demais ricaços do trumpismo não exibem originalidade. São descendentes de antecessores da mais elevada estirpe. A sociedade norte-americana apresenta uma trajetória marcada pelo liberal-oportunismo consubstanciado no mando e controle do Estado pelos ricaços.

Nos Estados Unidos das últimas décadas do século XIX e no início do século XX, as peripécias financeiras, especulativas e corruptas dos “barões ladrões” levaram a sucessivos episódios de destruição da riqueza e das condições de vida dos mais frágeis. As falcatruas se desenvolveram à sombra de um Estado cúmplice da concorrência darwinista. O Estado deixou-se contaminar de alto a baixo, da polícia ao Judiciário, pela lógica da grana.

Na posteridade da Grande Depressão, do sofrimento popular, FD ­Roosevelt e o New Deal inauguraram tempos de respeito às instituições democráticas e republicanas. Em 1936, na convenção do Partido Democrata, Roosevelt disparou contra “os príncipes privilegiados das novas dinastias econômicas”, que, “sedentos de poder, avançaram no controle do governo, criaram um novo despotismo e o cobriram com as vestes da legalidade. Os mercenários a seu serviço buscaram submeter o povo, seu trabalho e suas propriedades”.

Durou pouco o ethos do New Deal. Nos mandatos de Ronald Reagan e de ­George Bush Father & Son, a promiscuidade era escancarada: difícil dizer se estávamos diante de um governo eleito ou de um escritório de corretagem. Mas os ex-presidentes republicanos não eram exceções. O democrata Bill Clinton protagonizou a façanha de impor os interesses dos “príncipes privilegiados” da alta finança sob os aplausos e o apoio entusiasmado dos endinheirados do planeta.

Reportagem no New York Times assevera que “em menos de um mês no poder, os plutocratas do presidente Trump embarcaram em um esforço violento e sem remorso para impor sua vontade ao Departamento de Justiça, buscando justificar suas ações como a simples reversão da ‘politização’ da aplicação da lei federal sob seus antecessores da era Biden”.

O texto prossegue: “A campanha feroz, executada por Emil Bove III, ex- advogado de defesa criminal do senhor Trump, agora o segundo maior funcionário do departamento, é realizada em público, em tempo real, por meio de uma série de movimentos que ressaltam a intenção do senhor Trump de dobrar a equipe de carreira tradicionalmente apartidária da polícia federal para atender aos seus objetivos”.

Retomo ao que ousei escrever nas generosas páginas de nossa ­CartaCapital. Vou me valer da sabedoria de Herbert Marcuse. Autor do ensaio O ­Estado e o­ ­Indivíduo no Nacional-Socialismo, ­Marcuse considerava a ordem liberal um grande avanço da humanidade. Sua emergência na história submeteu o exercício da soberania e do poder ao constrangimento da lei impessoal e abstrata.

A legalidade é a primeira vítima

Marcuse também procurou demonstrar que a ameaça do totalitarismo está sempre presente nos subterrâneos da sociedade moderna. Para ele, é permanente o risco de derrocada do Estado de Direito: os interesses de grupos privados, em competição desenfreada, tentam se apoderar diretamente do Estado, suprimindo a sua independência formal em relação à sociedade civil.

No regime nazista, o Estado foi apropriado pelo “movimento” racial e totalitário nascido nas entranhas da sociedade civil. Os tribunais passaram a decidir como supremos censores e sentinelas do “saudável sentimento popular”, definido a partir da legitimidade étnica dos cidadãos. A primeira vítima do populismo judiciário do nazismo foi o princípio da legalidade, com o esmaecimento das fronteiras entre o que é lícito e o que não é.

Os cânones do Estado de Direito impõem aos titulares das funções públicas, particularmente àquele que exerce a Presidência da República, a obrigação da publicidade dos atos praticados, o dever da impessoalidade nos procedimentos e na escolha de ministros e auxiliares. O sistema de regras positivas emanadas dos poderes do Estado, legitimado pelo sufrágio universal, é o único critério aceitável para as decisões emanadas do chefe da nação.

No Project Syndicate, Richard K. Sherwin apresenta declarações do vice-presidente dos EUA, JD Vance. O vice trumpista declarou recentemente que “os juízes não têm permissão para controlar o poder legítimo do Executivo”. Sherwin adverte que “esse tiro, disparado contra o Judiciário Federal, ameaça interromper um entendimento há muito estabelecido de que os tribunais devem ter a última palavra sobre o que as leis significam e exigem. Visto no contexto dos decretos executivos constitucionalmente suspeitos do presidente Donald Trump – como acabar com a cidadania por direito de nascença e desmantelar agências administrativas aprovadas pelo Congresso – o desafio de Vance coloca em nítido relevo a crise constitucional em desenvolvimento nos Estados Unidos”.

Para homenagear Mark Twain, vou reproduzir um dos seus mais instigantes aforismos: “A História não se repete, mas rima”. Asseguro que os maltrapilhos versos do trumpismo rimam com as proezas jurídico-políticas do nazismo de Adolf, o Hitler. Adendo: Não vou mencionar rimas de menor porte, tal como os desastres poéticos de Jair Bolsonaro & família.

Seguem os rastros do passado no presente. Hitler dirigiu-se ao Judiciário em um discurso no Reichstag, em 26 de abril de 1942. Entre outras coisas, disse: “Espero que a profissão jurídica alemã entenda que a nação não está aqui para eles, mas eles estão aqui para a nação… De agora em diante, intervirei nos casos e removerei do cargo os juízes que evidentemente não entendem a demanda do momento”.

No Brasil varonil, os asseclas bolsonaristas de Trump veem nas formalidades do direito um obstáculo ao exercício da moral. Na verdade, nada é mais imoral nas sociedades modernas do que o moralismo dos beldroegas. •

Publicado na edição n° 1350 de CartaCapital, em 26 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Proezas do nazitrumpismo’

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Last Update: 20/02/2025