Pela primeira vez, o Brasil aposta de fato na autonomia no acesso ao espaço. Até o fim de 2026, o País pretende concluir quatro projetos em curso para o desenvolvimento de Veículos Lançadores de Pequeno Porte (VLPPs), equipamentos contratados da indústria espacial capazes de colocar em órbita satélites e outros artefatos, todos com tecnologia nacional, rompendo mais de meio século de dependência de produtos estrangeiros. Para tanto, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação investe mais de 1 bilhão de reais, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), em parceria com a Universidade Federal do Maranhão. A base será o centro de lançamento na cidade maranhense de Alcântara, consolidando o estado como o segundo mais importante polo espacial brasileiro, atrás apenas de São José dos Campos.
“A questão espacial na vida moderna adquire uma centralidade cada vez maior, por isso assistimos a uma verdadeira corrida das tecnologias e a um certo acirramento na confrontação geopolítica. Como o Brasil tem essa ambição de ter um sistema espacial completo, precisa valorizar a grande infraestrutura de Alcântara, uma das melhores do mundo em termos de localização geográfica”, afirma Ronaldo Carmona, professor de Geopolítica da Escola Superior de Guerra e do mestrado em Engenharia Aeroespacial na UFMA. Os VLPPs em desenvolvimento, diz, vão representar a primeira geração de veículos lançadores, porta de entrada para a indústria nacional desenvolver satélites mais complexos. No fim de janeiro, a ministra Luciana Santos esteve no Maranhão para anunciar a contrapartida do governo na ordem de 30 milhões de reais para a instalação de uma fábrica de propelentes na capital São Luís.
É um passo para garantir o controle da Base de Alcântara, de posição geográfica excepcional
Segundo a ministra, os projetos representam um marco histórico para o Brasil em múltiplas dimensões, seja no campo político, estratégico ou de soberania nacional, por permitir ao País construir e lançar os próprios foguetes e satélites, sem depender de tecnologias estrangeiras. “A localização de Alcântara, próxima à linha do Equador, oferece vantagens estratégicas, reduzindo custos e aumentando a eficiência dos lançamentos. Além disso, a base fortalece a capacidade de monitoramento e defesa do território nacional, essencial para a vigilância de fronteiras e recursos naturais”, acrescenta, antes de ressaltar a importância dos projetos para o desenvolvimento econômico e social do Maranhão e do Nordeste, criando empregos qualificados e estimulando a inovação, iniciativas determinantes para a inclusão social e redução das desigualdades regionais.
A ministra lembra o peso do Brasil no cenário internacional, que passa a ser identificado como um parceiro importante no setor espacial, fortalecendo a influência diplomática e tecnológica e abrindo portas para cooperações globais. “Esses investimentos não são apenas para o presente, mas também para o futuro. Eles refletem uma visão de longo prazo que busca posicionar o Brasil como uma potência espacial e tecnológica, capaz de competir globalmente e de garantir o bem-estar de sua população. Estamos construindo um legado que vai além do alcance imediato, projetando o Brasil e suas vocações.” Santos prossegue: “Os investimentos em Alcântara são mais que uma conquista técnica ou científica. São uma afirmação da nossa capacidade de inovar, de crescer de forma sustentável e de garantir que o Brasil ocupe o lugar que merece no cenário mundial. Estamos escrevendo um novo capítulo na história do nosso País”.

Vantagem. A Base de Alcântara ocupa uma posição estratégica – Imagem: Joedson Alves/ABR
Além dos quatro projetos de VLPPs, está em desenvolvimento um satélite óptico submétrico de grande porte. O investimento, de 230 milhões de reais, está nas mãos de um consórcio liderado pela empresa Visiona, do grupo Embraer. Por causa do peso, em torno de 250 quilos, o equipamento precisa ser lançado por um veículo estrangeiro, pois os nacionais em construção não suportam esse volume.
“O Centro de Pesquisas Espaciais do Maranhão, que vai ser construído a partir da infraestrutura laboratorial na Base de Alcântara, não representa apenas o desenvolvimento de lançadores e satélites. Vai influenciar na indústria de manufatura desses equipamentos”, afirma Carmona. “O desenvolvimento dos VLPPs impulsionará uma cadeia produtiva que envolve engenharia de alta complexidade, materiais avançados, eletrônica, software e muito mais. Isso gerará empregos de alta qualificação, fomentará a inovação e atrairá investimentos tanto nacionais quanto internacionais. Além disso, a expertise adquirida poderá ser aplicada em outros setores, como defesa, telecomunicações e energia, ampliando o impacto positivo na economia”, reforça a ministra.
Os investimentos projetam o Brasil no mundo, diz a ministra Luciana Santos
Os novos projetos em Alcântara não alteram o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas que o Brasil tem com os Estados Unidos desde 2019, que autoriza tanto o governo quanto empresas norte-americanas a explorar comercialmente a base maranhense. O documento foi assinado no início do governo Bolsonaro com o então presidente Donald Trump, motivo pelo qual tem recebido uma série de críticas por colocar em xeque a soberania brasileira. O cientista político Danilo Serejo, liderança quilombola de Alcântara, defende que o retorno financeiro da exploração comercial do CLA seja compartilhado com as centenas de famílias instaladas no território e cobra do governo federal o cumprimento do Decreto de Interesse Social e da Portaria de Reconhecimento do Território, assinados pelo presidente Lula em setembro do ano passado.
Os documentos preveem que a área destinada à base militar não pode ser expandida, hoje são cerca de 9 mil hectares, e determinam a regularização de 78 mil hectares de títulos de terras para os quilombolas. Numa segunda etapa, o governo concederia a titulação definitiva da posse da terra. Passados cinco meses das tratativas, não há registros de avanço. “Esses projetos anunciados não significam muita coisa para nós, porque não alteram a vida dos moradores de Alcântara. Não há uma política do governo de transferir parte dos benefícios dessas atividades espaciais ou tecnológicas para as comunidades. A gente nunca acessou os ganhos com essa exploração. Até segunda ordem, não teremos nenhum impacto positivo”, critica Serejo, classificando como frágeis os acordos assinados com o governo federal, por não oferecerem prazos nem estabelecerem nenhuma cláusula de salvaguarda em caso de descumprimento.

À espera. A comunidade quilombola ainda não viu os efeitos práticos do acordo assinado por Lula – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
O pesquisador critica o governo Lula por manter o acerto com os Estados Unidos, herança da era Bolsonaro. “A ideia de soberania não é mais algo determinante. Nem para os militares nem para os governos. Lá em 2001, uma das razões principais da primeira versão do acordo ter sido arquivada é que ele afrontava a soberania, mas hoje é praticamente o mesmo. Então, governos de direita, de extrema-direita ou progressistas, como o de Lula, têm em comum a defesa desse contrato com os Estados Unidos.” Mais: “Nessa guerra comercial que Trump quer impor a vários países, inclusive ao Brasil, o governo tem dito que, se isso acontecer, haverá uma reação recíproca, que, se o presidente Trump taxar de lá, a gente taxa de cá. Aí eu pergunto: o presidente Lula teria coragem suficiente de dar uma resposta retaliatória aos EUA em relação a Alcântara e sair do acordo de salvaguardas?”
Em 2001, o governo FHC tentou entregar a base aos Estados Unidos. O projeto não prosperou e ficou engavetado até o governo Michel Temer, que começou a pavimentar o caminho para Bolsonaro fechar a parceria. Empossado há mais de dois anos, Lula não revisou os termos do documento, que continua em vigor, sem nenhuma alteração. •
Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O céu sobre nossas cabeças’