O tema dos supersalários e penduricalhos que fazem a remuneração de uma fatia do funcionalismo ficar bem acima do teto constitucional é um daqueles assuntos mal resolvidos da administração pública brasileira que, volta e meia, retomam ao debate público. Mais recentemente, o assunto ganhou maior projeção devido às medidas visando enxugar os gastos do governo federal e de posicionamento adotado em ação julgada no Supremo Tribunal Federal (STF).
Na segunda-feira (10), o ministro Flávio Dino, do STF, deteve-se sobre o tema ao negar pedido de um promotor para receber auxílio-alimentação retroativo ao período entre 2007 e 2011, quando ocupava cargo de juiz federal. O promotor alegava, na ação, que o pagamento do auxílio foi autorizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
De acordo com o ministro, a norma do CNJ autorizou o pagamento, mas não permitiu o repasse retroativo do auxílio. Ao expor sua decisão, Dino classificou a concessão de vantagens que extrapolam as determinações legais como “abuso” e “inaceitável vale-tudo”.
Além disso, destacou: “Hoje é rigorosamente impossível alguém identificar qual o teto efetivamente observado, quais parcelas são pagas e se realmente são indenizatórias, tal é a multiplicidade de pagamentos, com as mais variadas razões enunciadas (isonomia, ‘acervo’, compensações, ‘venda’ de benefícios etc.)”.
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O limite aos supersalários também consta da lista de 25 prioridades da equipe econômica junto ao Congresso Nacional para 2025 e 2026, entregue pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad ao novo presidente da Câmara, Hugo Motta (REP-PB), no início do mês. A ideia é que seja apresentado um projeto de lei detalhando os limites para supersalários promulgados pela emenda constitucional do pacote de corte de gastos.
No final do ano, o deputado Guilherme Boulos (PSol-SP) apresentou projeto para combater os penduricalhos e as altas remunerações dessa pequena, mas simbólica fatia do funcionalismo. Segundo a Pnad Contínua de 2023, apenas 0,3% dos servidores efetivos do país tinham rendimento superior ao máximo constitucional.
Tais propostas são vistas como uma forma de estabelecer maior isonomia e razoabilidade nos vencimentos, além de resultar numa economia anual de R$ 5 bilhões.
Conforme reportagem do UOL de janeiro, tendo como base dados do CNJ, ao menos 41 juízes de cinco diferentes tribunais receberam mais de R$ 500 mil em dezembro. Desses, 27 são do Tribunal de Justiça de Rondônia,
Segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2021, que traz informações de 8,8 milhões de funcionários, a maior proporção de servidores ganhando acima do teto está na esfera estadual, com 60,6%; no âmbito federal, o percentual é de 30,5% e no municipal, 9%.
Nesse universo, um dos que concentram os maiores ganhos é o judiciário. Dados colhidos pelo doutor em direito Bruno Carazza, autor do livro “O país dos privilégios – Volume 1: Os novos e velhos donos do poder”, mostram que, em 2023, 93% dos juízes brasileiros ganharam mais por mês do que o salário de ministros do STF, estabelecido como teto do funcionalismo conforme a Constituição. Naquele ano, o valor do teto era de R$ 39,3 mil até março e, depois, passou a 41,7 mil; hoje é de pouco mais de R$ 46,3 mil.
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No caso do judiciário, os principais problemas são encontrados nos tribunais estaduais. Segundo análise feita pela Transparência Brasil, tendo como base dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, por exemplo, responde pelos maiores estouros do valor máximo concedido ao funcionalismo, pagando em média R$ 85,7 mil a juízes e desembargadores. Na ponta oposta, o Amazonas é o que menos extrapolou, com uma média de R$ 51 mil.
Setor quase nunca lembrado quando se fala de ganhos exorbitantes na seara pública é dos titulares de cartórios, que recebem em média R$ 142 mil por mês, segundo dados Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) de 2022 também levantados pelo autor.
Sem generalizações
Importante reforçar que apenas 0,3% dos servidores recebem acima do teto. Essa diferenciação é fundamental porque o debate necessário em torno do combate aos excessos muitas vezes descamba para a velha cantilena segundo a qual servidores públicos seriam privilegiados. E esse discurso inevitavelmente deságua no debate sobre a redução do Estado que, por sua vez, leva ao desmonte e à precarização dos serviços públicos, prejudicando, sobretudo, a população mais vulnerável.
Uma fonte do judiciário ouvida pelo Portal Vermelho e que prefere não ser identificada apontou essa generalização como um fator que distorce a realidade, pois muitos juízes ganham menos do que o teto estabelecido, além terem sobre sua mesa um sem número de processos.
“Há um achatamento contínuo da remuneração básica do judiciário que vem fazendo com que as reposições acabem sendo por meio das gratificações”, explica. E corrigir esse achatamento, pondera, depende de ações por parte dos Três Poderes que, muitas vezes, preferem não ter esse ônus político.
Para essa fonte, “estabelecer uma remuneração justa, condizente com a responsabilidade e o volume de trabalho de um juiz — que é enorme no Brasil —, ajuda a fortalecer a magistratura frente a possíveis interferências externas do capital e a garantir sua independência. Isso é bom para a democracia, para o fortalecimento da justiça, sobretudo no que diz respeito à Justiça do Trabalho, que lida diretamente com os desmandos do patronato e com a necessária garantia de direitos à classe trabalhadora”.
Segundo informações do Conselho Nacional de Justiça, o Poder Judiciário brasileiro julga quatro vezes mais processos do que instituições semelhantes em países europeus. “Enquanto no Brasil o número de casos novos na primeira instância, por cem habitantes, é de 14,68 processos e o número de casos solucionados na primeira instância, por cem habitantes, é de 11,89 processos, na Europa, os mesmos indicadores são de 3,57 e 3,26, respectivamente”, aponta.
Ainda de acordo com o CNJ, em 2023 foram quase 84 milhões de processos em tramitação, distribuídos por 91 tribunais (mais de 80% na Justiça Estadual), 18 mil juízes e 275 mil servidores.
Presidente do STF e do CNJ, o ministro Luís Roberto Barroso também diz que há críticas injustas no debate sobre supersalários. “Há penduricalhos que são inaceitáveis e devem ser questionados judicialmente. Mas há situações legítimas, como um juiz que recebe férias no mês e ultrapassa o teto ou aquele que assume o acervo processual de um colega e recebe um acréscimo por isso”, disse Barroso em entrevista à GloboNews no início deste mês.
Na avaliação de Aldo Arantes, coordenador nacional da Associação Nacional de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania, a solução passa por correções administrativas. Ele também pondera que é preciso separar “o joio do trigo”.
Para ele, “é preciso lembrar que esse problema atinge uma parcela pequena do funcionalismo, mas também é preciso reafirmar a necessidade de respeitar o teto constitucional. Se há defasagem salarial, isso precisa ser tratado por meio da correção, em diálogo com Executivo, Legislativo e Judiciário. O que não pode haver é o uso de mecanismos paralelos de compensação dessas perdas à margem da lei”.