Semipresidencialismo é golpe!

Por Ângela Carrato* 

Dias após ser eleito presidente da Câmara dos Deputados, para o biênio 2025-2026, Hugo Motta (Republicanos-PB) já deixou claro a que veio.

Colocou em prática uma antiga reivindicação de parlamentares que não gostam de trabalhar. Determinou que a presença obrigatória na Casa seja de apenas um dia por semana. Nos outros, as deliberações serão virtuais.

Vale dizer: enquanto para os “nobres” parlamentares vale a escala de trabalho 6×5, negam para os trabalhadores brasileiros a jornada 6×2.

A decisão foi um explícito aceno aos deputados de extrema-direita. Detalhe: como este não é um ano de eleição, a pergunta que fica é: o que esses senhores vão fazer de tão importante nos outros dias da semana?

Hugo Motta, um lamentável cruzamento político de Arthur Lira com Eduardo Cunha, que se elegeu pregando o “entendimento” e citando, mesmo que fora de contexto, palavras do ex-presidente da Câmara e dirigente da Constituinte, Ulysses Guimarães, ainda fez muito pior.

Afirmou que o 8 de janeiro de 2023 não foi tentativa de golpe e deu sinal verde para a tramitação da emenda parlamentar que institui o semipresidencialismo no país.

Em entrevista a uma rádio de João Pessoa, Motta reconheceu a gravidade da depredação das sedes dos Três Poderes, promovida por “vândalos e baderneiros”, mas disse que não houve coordenação política suficiente para caracterizar um golpe.

A declaração, que poderia ter passado sem maiores repercussões se não fosse a do presidente de um dos poderes atacados, provocou imediato aplauso por parte dos aliados de Jair Bolsonaro e indignação de quem sabe que o objetivo é tentar aprovar um dos vários projetos que concede anistia aos golpistas.

A declaração de Motta pegou mal, especialmente por ele desconhecer um relatório de mais de 800 páginas feito pela Polícia Federal, apontando a responsabilidade de Bolsonaro e de outras duas dezenas de pessoas, entre civis e militares, nesta mais do que documentada tentativa de golpe.

Possivelmente ele a fez para agradar aos bolsonaristas e igualmente para sentir a reação que poderiam ter os diversos setores da sociedade.

Como a resposta foi uma enorme desaprovação, não houve da parte dele compromisso em pautar o projeto de anistia aos golpistas, argumentando que “a decisão será tomada em conjunto com os líderes partidários da Casa”.

Motta não só negou o árduo, longo e cuidadoso trabalho realizado pela Polícia Federal ao fazer uma radiografia da tentativa de golpe e apontar responsabilidades. Ele desconheceu o trabalho do STF, em especial do ministro Alexandre de Moraes, e da própria Procuradoria-Geral da República. Paulo Gonet e sua equipe abriram mão das férias para acelerarem esses trabalhos.

Nas próximas semanas a PGR deve anunciar o fatiamento do processo para que o julgamento aconteça este ano.

Pelo que se comenta, o julgamento começará pelos “cabeças”, Bolsonaro e general Braga Netto, envolvidos até mesmo no plano “Punhal Verde e Amarelo” para matar Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes.

É importante observar que o ministro Moraes já propôs, para centenas de pessoas com penas leves e que se dizem “inocentes”, a seguinte condição para se livrarem: assinar termo de renúncia a utilizar redes sociais por dois anos, pagar multa de R$ 5 mil ou substituí-la por trabalhos comunitários.

A maioria não aceitou.

Daí ser no mínimo curioso o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, ter praticamente proposto nesta segunda-feira (10/2), durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, soltar “inocentes” ou quem teve participação mínima nos atos de 8 de janeiro como um caminho para “pacificar o país”, uma vez que este caminho já existe.

No momento, a PGR tem duas preocupações: possibilitar que os julgamentos aconteçam em 2025, evitando entrar em 2026, por ser ano eleitoral, e não repetir o erro da Justiça dos Estados Unidos que, por ter demorado muito, acabou permitindo que Donald Trump, apesar dos crimes que cometeu, pudesse disputar e ser eleito presidente da República.

Uma das primeiras medidas de Trump, como se sabe, foi autoindultar-se e anistiar todos os envolvidos na invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, que redundou em cinco mortes e mais de 140 feridos.

Por sentença do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Bolsonaro está inelegível por oito anos. O novo julgamento deve levá-lo à prisão. Daí atitudes como a de Hugo Motta servirem para tentar manter em alta o golpismo contra o governo Lula.

Mesmo sentido tem a emenda que institui o semipresidencialismo no Brasil. De autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR), ela amplia os poderes do Congresso Nacional, limitando a autonomia do presidente da República.

Conhecido por sua aversão a governos progressistas, Hauly votou pela abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff e durante o governo de Michel Temer foi a favor da PEC do Teto de Gastos Públicos e da Reforma Trabalhista. Esteve também entre os que, em 2017, votou pelo arquivamento da denúncia de corrupção passiva de Temer.

A emenda do semipresidencialismo foi protocolada na Câmara dos Deputados após obter o quórum de 178 assinaturas, nove a mais do que o necessário para tramitar. Entre os signatários está o próprio Hugo Motta que, mesmo apoiando o texto, declarou que não pretende apressar a sua tramitação.

Dito de outra forma fica claro que os golpistas – mídia corporativa incluída – a serviço da classe dominante e de seus apoiadores externos, pretendem manter apontada para o governo Lula uma lança que pode ser desfechada a qualquer momento, uma vez que se trata de ampliar os poderes do Congresso Nacional, limitando a autonomia do presidente da República.

Nem criativos estes golpistas são, pois proposta semelhante já foi tentada e derrotada em duas situações anteriores.

De um total de 513 deputados federais, o PT conta com uma bancada de apenas 70 membros. Somados os partidos progressistas chegam, no máximo, a 130 parlamentares.

A extrema-direita e os chamados “seis partidos-irmãos” (Partido Liberal, Progressistas, Republicamos, Podemos, União Brasil e Cidadania) possuem perto de 300 membros, distribuídos em bancadas informalmente conhecidas como da Bala, do Boi e da Bíblia.

Situação que obriga o governo Lula a estar permanentemente negociando.

Como Lula tem se saído bem das negociações, conseguindo aprovação de matérias que muitos julgavam impossível, como a da Reforma Tributária, a extrema-direita resolveu apertar o cerco.

A proposta de semipresidencialismo faz parte deste processo.

O parlamentarismo que já foi rejeitado pelo eleitorado brasileiro em 1963, por meio de um referendo, e em 1993, por um plebiscito, reaparece batizado como semipresidencialismo.

Quando da renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961, era para seu vice, João Goulart, ser empossado. Mas não foi o que aconteceu.

Goulart, que estava em visita oficial à China, enfrentou a resistência da classe dominante brasileira e dos Estados Unidos e só conseguiu tomar posse depois de uma delicada negociação que instituiu o parlamentarismo no país, um verdadeiro “golpe branco”, como se dizia na época.

Como a medida visava restringir seus poderes, Jango convocou um referendo cujo resultado em 1963 não poderia ter sido mais eloquente: 82,3% da população brasileira votaram contra e apenas 14,2% se posicionaram a favor do parlamentarismo.

Determinado pelo artigo 2º das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, a nova consulta popular sobre o parlamentarismo aconteceu em 21 de abril de 1993. O resultado confirmou a preferência dos brasileiros pelo sistema presidencialista de governo 55,41%, contra 24,79% dos que apoiaram o parlamentarismo.

Espertamente, a extrema-direita agora está propondo o semipresidencialismo, uma suposta variação que evita mencionar o parlamentarismo, mas não muda em nada o essencial: ampliar os poderes do Congresso Nacional e limitar a autonomia do presidente da República, desrespeitando a vontade das urnas.

Qual a razão desta proposta agora?

Mesmo colocando em prática todas as amarras para que o terceiro governo Lula não acontecesse ou fosse inviabilizado – tentativa de golpe, teto para os gastos públicos, Banco Central “independente” com taxas de juros nas alturas e sequestro do orçamento da União por meio das chamadas emendas parlamentares secretas e emendas PIX – o resultado na economia tem sido incrivelmente bom.

A mídia corporativa, a serviço da classe dominante, disse e continua repetindo que a economia vai mal, mas teve que engolir a “surpresa positiva” dos resultados.

Os economistas neoliberais, únicos ouvidos por esta mídia, que estimavam que a economia crescesse de 1,5% em 2024, ficaram calados com um crescimento de 3,5%, o oitavo maior entre todas as economias do mundo.

A taxa de desemprego, outro fator determinante quando se trata da economia de um país, em 2024 foi de 6,6%, a menor já registrada desde o início da série histórica, em 2012.

O comércio foi o setor que mais empregou no ano passado, com o crescimento sendo puxado pelos serviços, indústria, consumo das famílias e investimentos do governo.

Não por acaso o governo Lula enfrentou, no ano passado, campanha tão pesada em se tratando da “necessidade de ajuste fiscal”. Ajuste que nada mais é do que a tentativa da classe dominante frear os investimentos públicos e jogar Lula contra os interesses da maioria da população que o elegeu.

Apesar das amarras de um Congresso Nacional dominado pela extrema-direita e de um Banco Central a serviço dos golpistas, o sucesso do governo na economia está levando seus inimigos a mudaram a estratégia.

Dispostos a criarem todo tipo de problema para Lula, apostam agora no semipresidencialismo.

Como disse o próprio Hugo Motta, não há pressa para a tramitação da emenda.

É verdade.

O que ele não disse é que a extrema-direita sabe que não haveria prazo hábil para que a medida entrasse em vigor no atual mandato presidencial.

Daí mirarem uma possível vitória de Lula em 2026.

Pesquisas recentes indicando que Lula venceria todos os concorrentes nas eleições de 2026 acenderam o sinal de alerta para a extrema-direita.

Com Bolsonaro fora do páreo, nomes como os dos governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas, de Minas Gerais, Romeu Zema, do Paraná, Ratinho Júnior, ou de Goiás, Ronaldo Caiado, não se mostram em condições de vencer o petista. Nem mesmo figuras como a ex-primeira-dama, Michele Bolsonaro, ou o cantor Gusttavo Lima se apresentam como competitivos.

Daí o semipresidencialismo ser a nova obsessão para os golpistas.

A avaliação da extrema-direita leva em conta que não será fácil derrotar o PT nas próximas eleições. Nas seis eleições presidenciais que disputou, venceu cinco: em 2002, 2006, 2010, 2014. Três vitórias de Lula e duas de Dilma Rousseff.

Se não fosse o golpe contra Dilma, em 2016, e a prisão, sem provas do próprio Lula, em 2018, que o impediu de ser candidato, dificilmente Bolsonaro teria sido eleito.

Mais ainda: com 45 anos de existência, completados nesta segunda-feira (10/2), o PT se apresenta como um dos maiores e mais bem sucedidos partidos de esquerda do mundo. Cometeu erros? Sem dúvida.

Correções de rota precisam ser feitas? Claro que sim. Mas é inegável a sua capacidade para enfrentar e sobreviver a todo tipo de perseguição e mentiras, como o Mensalão e a Operação Lava Jato.

Partidos de esquerda como PC do B e PSOL não conseguiram sair do gueto e correm risco de extinção. Já PSDB, tido como socialdemocrata, que, nesses mesmos 45 anos de existência, elegeu presidente da República por duas vezes, também está em vias de extinção. Seu dirigente, o ex-deputado Marconi Perillo, propôs a fusão ao MDB, mas a proposta enfrenta dura resistência do deputado federal e ex-governador de Minas Gerais, Aécio Neves.

Responsável por dar início às manifestações golpistas contra Dilma, ao se recusar a reconhecer a derrota nas eleições de 2014, Aécio está sendo apontado como “coveiro dos tucanos”, por colocar sempre seus interesses pessoais à frente de tudo. Ele ainda sonha com a presidência da República, embalado no fato de ser neto de Tancredo Neves.

Nem seus poucos correligionários confiam nele e a maioria do eleitorado não sabe sequer quem foi Tancredo, que morreu há 40 anos, antes de tomar posse como presidente.

Voltando ao semipresidencialismo proposto por Hauly, ele concede ao presidente a prerrogativa de nomear o primeiro-ministro, mas amplia significativamente as atribuições do Congresso, que passaria a definir o plano de governo e o Orçamento da União.

Bingo!

Entendeu aonde a extrema-direita quer chegar?

Quer garantir para si o controle do Orçamento da União, com os parlamentares passando a fazer em público e de forma legalizada o que hoje fazem em segredo e em confronto com as decisões do ministro Flávio Dino, do STF, que exigiu transparência para as emendas parlamentares.

Mais ainda. Um presidente que não dispõe de orçamento para governar é uma figura quase decorativa, que manteria apenas algumas funções como a de indicação de ministros do STF, chefes de missão diplomática, presidente e diretores do Banco Central, além do procurador-geral da República e do advogado-geral da União.

Já a nomeação de ministros ficaria sob a responsabilidade do Congresso.

Já imaginou o tipo de ministério que teríamos se esse tipo de prerrogativa estivesse em vigor!

É interessante observar que no atual governo, o presidente é do PT, mas o governo, não. Por não dispor de maioria no Congresso, Lula governa com uma frente ampla, que envolve partidos de direita, centro, de esquerda e até da extrema-direita, como o União Brasil.

Manejar um arranjo com tamanha amplitude não tem sido fácil, em especial numa conjuntura particularmente delicada como a atual, com o fascismo em ascensão no mundo e a extrema-direita brasileira assanhada como nunca após a vitória de Trump.

No entanto, essa tem sido a condição para evitar que a extrema-direita faça mais danos ao Brasil, do que os já acontecidos nos governos de Temer e Bolsonaro.

Era para a mídia corporativa estar mostrando todos esses riscos para o público. Era para estar explicando que a proposta de semipresidencialismo nada mais é do que uma estratégia para enfraquecer o Executivo e concentrar poder no Legislativo, o que pode comprometer o equilíbrio institucional e a própria democracia brasileira.

Já pensou o que seria do Brasil e dos brasileiros se estivessem no poder tipos que declaram amor aos Estados Unidos e beijam a bandeira alheia num momento em que Trump lança ataques ao mundo e impõe tarifas de 25% a produtos dos mais diversos países, inclusive do Brasil?

Por tudo isso, semipresidencialismo é o nome da vez para o velho golpe contra governos progressistas.

*Ângela Carrato é  jornalista. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 11/02/2025