“Consolar significa dar solo (con-solo), apoio, defesa, acolhida, abraço e tantos outros…Santo Inácio de Loyola diz que ou estamos consolados ou estamos desolados” – Dom Pedro Brito Guimarães
A vida traz surpresas.
Nunca imaginei que veria um filme que retrata a ditadura que se instalou no Brasil em 1964, em cinema de shopping, numa cidade conservadora (desculpem o pleonasmo) do interior de São Paulo: Jundiaí.
Ao final de Ainda estou aqui, aplaudi e fui acompanhado.
Imensurável a contribuição que o filme trouxe à memória, à cidadania, à politização dos mais jovens, que não viveram aqueles anos de terror do Estado.
Mas a minha surpresa foi ampliada: pela concessão merecidíssima do Globo de Ouro a Fernanda Torres e do Prêmio Goya ao filme de Walter Salles, como melhor película ibero-americana.
Em sincronicidade com esta última premiação do filme brasileiro, assisti Trilha Sonora para um Golpe de Estado.
Ao sair do cinema, enviei mensagens a amigos e grupos de amigos, recomendando vivamente o filme, imperdível.
Para a minha mais grata surpresa, Walter Salles, concomitantemente, deu entrevista à imprensa brasileira em que também qualificava imperdível aquele filme.
Na verdade, como ele bem percebera, ambas as obras cinematográficas estão intimamente ligadas.
O brasileiro restringe a violência do golpe ao Brasil, o outro contextualiza a dominação do Norte sobre o Sul, em âmbito mundial.
O filme é tão importante que não creio ser possível um tal poder de condensação do “espírito do tempo”, o zeitgeist dos alemães (zeit — tempo e geist — espírito). Melhor ainda, feito, todo ele, em matriz africana.
Entremeando música e política, diplomacia e espionagem, religião e cultura, a linguagem é extremamente simples e sofisticada, revolucionária mesmo.
A trama principal é o golpe de Estado que derrubou e assassinou o homem que levou à independência o antigo Congo Belga, Patrice Lumumba.
Em apenas sete meses de Lumumba eleito primeiro-ministro do Congo independente, a Bélgica, a França e os Estados Unidos da América derrubaram-no, mataram-no e retomaram o controle das maiores minas de urânio, ouro, diamante, nióbio, de que o país é um dos maiores depositários.
O preço foi altíssimo: mais de 70 mil civis mortos, ao tentarem resistir ao golpe. Aldeias inteiras queimadas, por bombardeios aéreos, patrocinados pelas potências estrangeiras, com a cumplicidade do então secretário-geral da ONU (que, em típica queima de arquivo, seria, posteriormente, morto em “acidente aéreo”).
Vale notar que ambos os golpes na República Democrática do Congo e no Brasil estão separados por apenas um par de anos. Coincidentemente, os mecanismos utilizados lá e aqui foram os mesmos: uma secessão que o legitimasse (o estado de Katanga, lá, e Minas Gerais, aqui – o que só não se concretizou, no caso brasileiro, por ter sido dizimada qualquer resistência efetiva).
Outra coincidência: ambos os mandatários Patrice Lumumba e João Goulart eram extremamente populares.
Mesmo estando Lumumba preso, seus partidários retomaram o controle de dois terços do território do país; Goulart gozava de mais de 70% das intenções de votos nas eleições presidenciais que deveriam ocorrer, abortadas pelo golpe militar de 1o de abril de 1964.
Em ambos os casos, o envolvimento da CIA foi total, com o apoio da diplomacia dos EUA e dos asseclas (a Europa Ocidental, principalmente).
Mas o filme revoluciona a própria linguagem cinematográfica, mostrando propaganda de um carro elétrico (sim, aquele da empresa do presidente, de fato, dos EUA) e da empresa do iPhone, ambas grandes consumidoras dos minérios da RDC.
O filme, assim como o livro de Joseph Conrad Coração das Trevas, que retrata o horror do domínio belga sobre o Congo no século XIX, já entrou para o rol das obras mais importantes sobre a descolonização.
A pesquisa feita para tanto é absolutamente impressionante, com imagens e falas as mais belas e relevantes de Malcon X (também posteriormente assassinado, se não diretamente, ao menos com a cumplicidade do estado) e citações as mais precisas e preciosas de Marcus Garvey e Franz Fanon.
Uma verdadeira aula de relações internacionais, que deveria ser assistida por todos, todas e todes as pessoas do planeta – e de outros, se lá houver vida, para que possam se precaver…
Caso fizesse falta um epitáfio à decadência moral, ética e política do Ocidente, já não falta.
Ainda uma flor sobre aquele túmulo: o Google suspendeu o banimento da utilização da inteligência artificial para armas. Não precisa ser um gênio para temer o que isso representa, no país que já registra um dos maiores índices de mortes por armas de fogo.
Ao lado disso, Trump suspendeu as sanções contra os colonos israelenses que diuturnamente atacam, torturam e matam palestinos, em sua própria terra.
Por tanto, sair do Conselho de Direitos Humanos da ONU era tão importante para o desgoverno dele.
Em nota positiva, uma dica para quem estiver na Cidade Maravilhosa (que continua, apesar do Paes): a exposição Do Sal Ao Digital. Uma história elaboradíssima da evolução dos meios de troca, valor e pagamento, ao longo da evolução da humanidade.
Para se ter uma ideia de como a história tem muitas formas de ser contada, vale citar uma das excelentes legendas daquela exposição: “Embora a invenção do dinheiro de papel seja associada a Benjamin Franklin na América moderna, células já eram produzidas muitos anos antes na China, por volta do ano 1000. O célebre explorador veneziano Marco Polo, quando esteve em tal país por volta do século XIII, ficou impressionado com a fabricação do papel e o valor das notas que não dependiam do objeto em si, como era o caso do metal, mas da chancela das autoridades do governo.”
Cinema, CCBB e Baixo Botafogo dão alento até em tempos de Trump.
Não desanimemos, como bem lembrou Eduardo Moreira, após Musk declarar apoio à extrema-direita alemã, a venda de carros da Tesla despencou na Alemanha. Parece que a venda de produtos de origem estadunidense não anda muito melhor no Canadá.