O assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, em 12 de fevereiro de 2005, completa 20 anos. Sua vida e legado devem ser revisitados para podermos compreender as raízes das recorrentes violações de direitos humanos na Amazônia e a importância daqueles que, como ela, lutaram em defesa da vida e da floresta.
A freira da Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur chegou ao Brasil em 1966, durante a ditadura militar, e viveu no interior do Maranhão, Ceará e Paraíba antes de se estabelecer em Anapu, no Pará, em 1982. Na região do Médio Xingu paraense, Dorothy combateu a grilagem (roubo) de terras, o desmatamento ilegal e a violência contra camponeses.
Sua atuação não se limitava à assistência social. A freira foi fundamental na organização política e na denúncia de crimes contra o meio ambiente e os trabalhadores rurais. Dorothy mapeava as áreas griladas, identificava os ladrões de terra e desmatadores e levava as denúncias às autoridades competentes.
Eu estive em Anapu algumas vezes para produzir reportagens publicadas na Repórter Brasil e conversei com muitos que conviveram com a missionária. Em uma das ocasiões, inclusive, dormi em uma rede estendida em um galpão a poucos metros da sepultura de Dorothy, pois era o local menos inseguro para um jornalista pernoitar na cidade sem despertar a atenção dos ruralistas.
Anapu é uma das cidades mais violentas da Amazônia, palco de inúmeros conflitos fundiários. Ocupa o 13° lugar no ranking de mortes violentas intencionais nas cidades da Amazônia Legal, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A população de 35 mil habitantes se espalha por um imenso território, oito vezes o tamanho da cidade de São Paulo.
Dorothy não trabalhava sozinha, mas construía parcerias com entidades e pessoas estratégicas. Sempre relatam que ela ia pessoalmente até as sedes do Ibama, Incra ou dos Ministérios Públicos em Belém ou Brasília e dizia que queria falar com os coordenadores. Não marcava audiência e ficava esperando dias até ser atendida. Sem desistir.
A luta de Dorothy incomodava os poderosos da região, que a perseguiam com ameaças e calúnias. Ela chegou a ser acusada de contrabando de armas. A freira não se intimidava. Em suas andanças, sempre levava consigo uma bolsa de pano, mas, em vez de armas, carregava a bíblia e mapas da região e anotações sobre os conflitos agrários, incluindo nomes de seus algozes.
Segundo o ambientalista Marcelo Marquezine, as informações que ela fornecia foram fundamentais para as operações do Ibama na região do Médio Xingu. Ele conviveu muito com Dorothy, pois entre 2003 e 2004 foi o coordenador-geral de fiscalização do Ibama.
O assassinato de Dorothy Stang ocorreu em uma estrada de terra do PDS Esperança. Ela foi alvejada com seis tiros à queima-roupa por pistoleiros contratados por fazendeiros.
Antes de morrer, Dorothy retirou a Bíblia da bolsa e começou a ler as bem-aventuranças: “Olha, meu filho, eu sei como é, vocês são mandados como soldados. Vocês querem terra? Venham com a gente”, teria dito aos seus executores, segundo depoimentos deles à Justiça.
Seu corpo ficou na terra alagada por horas, e a chuva daquele dia fez seu sangue escorrer pelos igarapés, fertilizando a terra, na visão de muitos. A ministra do Meio Ambiente da época, Marina Silva, relatou que, quando o corpo de Dorothy chegou a Anapu, houve um “foguetório” por parte dos que comemoravam sua morte.
Vinte anos após a execução, a memória de Dorothy Stang permanece viva para aqueles que continuam sua luta. Em Anapu, a Romaria da Floresta é realizada anualmente em julho, um evento que reúne centenas de pessoas para lembrar a trajetória da missionária e denunciar a violência no campo.
A romaria percorre 55 km, do local onde o corpo de Dorothy está sepultado até onde ela foi assassinada. A cada ano, uma cruz é erguida no local do assassinato com o nome dos que morreram depois dela na luta pela terra e pela floresta.
Apesar da projeção internacional que o assassinato de Dorothy teve, a violência em Anapu nunca cessou. Os conflitos fundiários persistem e 21 trabalhadores rurais foram assassinados desde sua execução. Todos os nomes estão gravados em uma cruz vermelha cravada ao lado do túmulo da missionária.
A ineficácia da justiça e das autoridades em punir os responsáveis por esses crimes perpetua a impunidade na região. Dos cinco condenados por tramarem e executarem o assassinato da religiosa, apenas um segue atrás das grades, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária do Pará (Seap): Rayfran das Neves Sales, o Fogoió, que efetuou os seis disparos.
Clodoaldo Carlos Batista, comparsa no momento da execução, cumpre pena em regime domiciliar, assim como Regivaldo Pereira Galvão, o Taradão, e Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, ambos condenados como mandantes do crime. Já Amair Feijoli Cunha, o Tato, responsável pela ponte entre os mandantes e os executores, cumpre pena em regime aberto.
O assassino condenado de um dos camponeses que tem o nome na cruz vermelha cravada na sepultura da missionária se tornou um badalado produtor de soja da região, que promove shows com cantores sertanejos famosos, como mostrei em reportagem publicada em agosto.
Dorothy foi a principal responsável pelos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), uma modalidade de reforma agrária que destina 20% da terra para a produção agrícola e o restante para a preservação da floresta. É o modelo considerado ideal para conciliar o desenvolvimento econômico, a produção de alimentos e a preservação da Amazônia.
Contudo, essa proposta contrariava os interesses dos madeireiros e grileiros, que a viam como uma ameaça aos seus negócios. O sucesso dos PDS implicaria em retirar a terra do mercado, impedindo que se tornasse um ativo para ser especulado à espera de grandes produtores de soja ou pecuária, como tanto ocorre na Amazônia.
Vinte anos depois, os PDS enfrentam invasões e desmatamento. A área ocupada pela agropecuária em projetos de desenvolvimento sustentável saltou de 4,38% para 22,27% entre 2005 e 2023, segundo levantamento publicado pela Agência Pública.
Passadas duas décadas, Dorothy segue como um símbolo de resistência e esperança. Para muitos, ela se tornou um mártir da floresta, uma figura sagrada que deu a vida pela causa dos pobres. Suas lutas e sacrifícios ressoam na memória popular, e sua imagem se confunde com a de uma santa, uma “encantada” que protege aqueles que defendem a terra e a floresta.
Há relatos de pessoas que dizem ter visto uma onça próxima ao local do assassinato, o que seria uma manifestação da presença espiritual de Dorothy, conforme ouviu o antropólogo Edmilson Rodrigues.
“A Dorothy é vista de uma maneira diferente dos santos de barro da Idade Média. Ela tem a dimensão do santo que almoçou na casa das pessoas, batizou o filho delas e dormiu em uma esteira de palha no chão”, explica Rodrigues, que pesquisou no doutorado como as narrativas rituais sobre líderes sindicais e agentes pastorais assassinados são apropriadas por coletivos rurais e indígenas, transformando-os em mártires e “encantados”.
Visitando casas de moradores dos assentamentos em Anapu, notei que, em várias, há um altar com imagens de Cristo, um santo, flores e uma foto da missionária. Em uma das casas, no Projeto de Assentamento Mata Preta, a fotografia que compunha o altar era prosaica: Dorothy montada em um burrinho.
A importância do legado de Dorothy é reconhecida internacionalmente. Nos Estados Unidos, recebeu diversos prêmios e homenagens, e o dia de sua morte foi proclamado o “Dia Dorothy Stang” no estado do Colorado. Há um mês, uma vigília foi realizada para ela no Vaticano.
No Brasil, seu nome é lembrado em escolas, assentamentos e organizações sociais. No entanto, sua memória também enfrenta tentativas de apagamento e distorção. Em Anapu, a igreja local cobriu com um pano uma pintura que homenageia a missionária, como mostrei em reportagem recente. “A maioria dos fiéis dizia que quando ia rezar não gostava de ver a pintura e os desenhos”, justificou o padre, dizendo não ter uma motivação política na atitude.