“Eu quero me tornar uma mulher”, diz Manitas, chefão do narcotráfico mexicano, à advogada Rita, sequestrada com o objetivo de ajudar o criminoso a realizar seu desejo. O estopim dramático de Emilia Pérez tem algo do cinema de Pedro Almodóvar: lances surpreendentes, contradições da sexualidade e do desejo e o melodrama familiar, que se espalha quando entram em cena a esposa e os filhos de Manitas.
O filme dirigido pelo francês Jacques Audiard, que estreou mundialmente no Festival de Cannes, em maio de 2024 e chegou às salas brasileiras na quinta-feira 6, está envolto numa vasta sequência de controvérsias após suas 13 indicações ao Oscar.
As atenções, desde então, têm se voltado mais às polêmicas do que à obra em si – algo que, na era das redes sociais, torna-se inevitável. No caso de Emilia Pérez, os escândalos ampliaram-se poucos dias depois de a espanhola Karla Sofía Gascón, primeira mulher trans a concorrer ao Oscar de melhor atriz, criticar a equipe de marketing da brasileira Fernanda Torres, indicada ao prêmio por Ainda Estou Aqui. Karla apontou que estaria sendo articuladamente “detonada” nas redes, para que fossem enfraquecidas suas chances de levar a estatueta.
A declaração, em 29 de janeiro, não pegou bem nem na Academia de Hollywood, que organiza o Oscar, nem entre colegas de ofício. Coincidência ou não, dezenas de postagens de Gascón no X (ex-Twitter) foram resgatadas no dia seguinte pela jornalista Sarah Hagi e reportadas na revista Variety em matéria assinada por Adam B. Vary. Nessas postagens, entre 2020 e 2021, a atriz faz comentários negativos sobre muçulmanos, asiáticos, George Floyd, artistas do mundo pop e até mesmo sobre a diversidade no Oscar.
O mal-estar foi tamanho, e as tentativas de Karla de contorná-lo tão fracassadas, que ela desativou a conta no X e deu várias entrevistas em canais norte-americanos se retratando. Ao mesmo tempo, a Netflix, distribuidora de Emilia Pérez nos EUA, removeu a atriz da campanha pelo Oscar, o que torna sua vitória em 2 de março quase uma impossibilidade. A corrida ao prêmio nem sempre preza pelo jogo limpo, mas inexistem relatos de uma temporada tão cheia de surpresas negativas quanto a atual – ainda mais em torno de um único título.
Fato é que Emilia Pérez agora está nas salas brasileiras e o público pode conferir se o barulho faz sentido dentro do filme. Afinal de contas, Karla Sofía Gascón nem é a única questão confusa em torno dele.
Antes da confusão do Oscar, o filme já tinha sido bastante criticado pelos mexicanos
Escrito e dirigido por Jacques Audiard, a partir de uma opereta criada por ele mesmo, Emilia Pérez gerou protestos no México, onde estreou em janeiro, por sua suposta representação estereotipada do país. O enredo trata especialmente de pessoas “desaparecidas” (leia-se: assassinadas) nos porões do crime organizado, e o faz pela chave lúdica de um musical dançante. Tal opção foi mal recebida por críticos e intelectuais do país.
Além disso, a representação de uma personagem em transição de gênero como forma de reiniciar a própria vida e se redimir dos crimes fundando uma associação beneficente, gerou respostas ruins por parte da comunidade LGBTQIA+. Outra crítica que recaiu sobre Emilia Pérez diz respeito ao fato de o filme ser uma produção francesa falada em espanhol e ter sido filmado nos arredores de Paris sem quase nenhum profissional mexicano, nem à frente nem atrás das câmeras.
Não fossem tantas questões complicadas, Emilia Pérez poderia passar despercebido, talvez, no máximo, chamar atenção pela premiação múltipla de suas atrizes em Cannes (além de Karla Sofía, houve reconhecimento às presenças de Zoe Saldaña e Selena Gomez) ou pelas 13 indicações ao Oscar, recorde de um filme de língua não inglesa. A concorrência informal com Ainda Estou Aqui nas três categorias que o brasileiro também foi indicado – atriz, filme internacional e filme – seria apenas uma curiosidade para apimentar a torcida. Mas nada é tão simples.
Quando o espectador, enfim, assistir ao filme, vai ser difícil desvinculá-lo de tudo que tem sido dito. A estranheza de ser um musical sobre transgeneridade e narcotráfico nem parece o maior dos obstáculos, mesmo vindo na esteira de Coringa: Delírio a Dois, que colocou Joaquin Phoenix e Lady Gaga para cantar suas mazelas afetivas. Os ruídos do filme de Audiard estão mais na aproximação do diretor com o material, especialmente porque o ritmo das canções é contagiante, mas as letras nem tanto. Vez ou outra, elas parecem mal encaixadas na melodia, o que desloca o impacto de eventuais boas cenas para esse desarranjo.
Por mais que se apresente como uma ópera fabular, Emilia Pérez não transmite, de fato, a gravidade do relato, ainda que Jacques Audiard se esforce para fazer isso. E não é que fosse impossível – basta pensar num filme como Chi-Raq (2015), no qual Spike Lee se inspira numa peça teatral da Grécia Antiga para tratar das guerras de gangues em Chicago usando rap e outras musicalidades. O que falta a Audiard é um envolvimento mais próximo com o que ele narra, mesmo na chave da fantasia. A consequência é que Emilia Pérez, embora esteja fazendo barulho demais (especialmente para fora da tela), tem efeito de menos. •
Publicado na edição n° 1348 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dentro e fora da tela ‘