Há séculos, assuntos relacionados à saúde são usados como fontes de desinformação e manipulação. Estudar a História é fundamental para não nos tornarmos massa de manobra de líderes oportunistas e aventureiros. Ao ignorar os erros do passado, nos arriscamos a voltar a eles, estagnarmos ou, pior, regredirmos.

E, convenhamos, observando o ritmo atual da roda da História, dá para perceber que a espécie humana está regredindo a passos largos. Na coluna de hoje, gostaria de fazer um convite à reflexão numa viagem ao passado com olhos bem abertos para o nosso tempo presente.

Comecemos no fim do século XIX, pouco depois de Charles Darwin publicar a teoria de evolução das espécies. Um primo de Darwin chamado Francis ­Galton estudou a ideia do controle genético para produzir uma raça humana perfeita, assim como se fazia com o gado.

Essa ideia se disseminou a partir da Inglaterra vitoriana e foi amplamente aceita nos Estados Unidos. Perto de Nova York foi criado um laboratório dessa ciência chamada eugenia, onde eram catalogadas características físicas, comportamentais e mentais das pessoas, então classificadas arbitrariamente como eugênicas (genes perfeitos) ou não.

Uma pessoa considerada indigna de transmitir seus genes era submetida a esterilização, sem seu consentimento. Por volta de 1920, com os EUA em crise econômica e recebendo grande número de imigrantes europeus que lotavam as ruas vivendo em condições precárias, a eugenia ficou muito popular nas classes mais favorecidas e acabou por se tornar lei em alguns estados americanos, como a Virgínia.

Daniel Kevles, historiador de ciência da Universidade de Yale, contou em uma entrevista à BBC, há alguns anos, que, na década de 1930, a esterilização disparou. Segundo Kevles, deficientes auditivos, visuais e mentais, epiléticos e até pessoas pobres eram esterilizados, já que a pobreza tinha seu próprio diagnóstico médico: o pauperismo. “Qualquer pessoa considerada um obstáculo para a sociedade estava em risco”, afirmou ele. Mais tarde a eugenia foi um dos grandes motores ideológicos do nazismo. Não é assombroso? Alguma semelhança com o mundo atual?

Sigamos em nossa viagem ao passado. No Brasil, em 1904, o partido de oposição ao governo, querendo ganhar votos na eleição seguinte, espalhou entre a população do Rio de Janeiro, que sofria com uma epidemia de varíola, o boato de que a vacina causava feições bovinas nos vacinados. Alguma semelhança com fatos recentes envolvendo jacarés?

Esse boato levou a uma insurgência violenta da população, com atos de vandalismo, destruição do patrimônio público, e até mortes, num episódio que ficou conhecido como Revolta da Vacina.

Mais uma história que mostra como caímos no mesmo erro sem perceber. Em 1930, médicos eram usados como garotos-propaganda de cigarros, receitados para aliviar o estresse e melhorar a concentração e a voz. Mais de 20 anos se passaram até descobrirmos os inúmeros males secundários ao tabagismo.

Depois de um árduo trabalho de políticas públicas aliadas à ciência, conseguimos reduzir substancialmente o tabagismo na população brasileira, especialmente entre os jovens. Entretanto, atualmente a indústria do tabaco se reinventa e investe pesadamente no cigarro eletrônico, indicado erroneamente por alguns médicos (mais uma vez manipulados e usados como propagandistas) como alternativa para parar de fumar, o que acabou por popularizar as vendas desses artefatos, disseminando o vício.

Mais grave ainda: a inescrupulosa indústria do tabaco adiciona sabores e aromas de frutas e doces, atraindo crianças e jovens para o tabagismo. Aliam-se a isso a cruzada da desinformação e os ataques sofridos por cientistas que estudam os danos causados pelo tabaco, álcool e alimentos ultraprocessados.

Além do ódio das redes sociais, muitos deles têm enfrentado até mesmo ações judiciais e violência física. O hábito de fumar volta ainda mais intenso, impulsionado pelos sais de nicotina dos cigarros eletrônicos que induzem à dependência mais rapidamente, trazendo novamente terríveis doenças que poderiam ser evitadas.

Eu poderia seguir enumerando vários outros acontecimentos impactantes e decisivos vividos e incrivelmente esquecidos pela humanidade. A História se repete. Estejamos atentos. Citando novamente o historiador Daniel Kevles: “É especialmente importante prestar atenção quando o que está em jogo é a liberdade, a dignidade e os direitos humanos”. •

Publicado na edição n° 1348 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A História se repete’

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Last Update: 06/02/2025