As mães tinham razão. A frase, inscrita em muros das principais cidades da Colômbia nas últimas semanas, transformou-se em lema da resistência popular protagonizada por mulheres e reavivou a busca por justiça e memória ao trazer novamente para o centro do debate público um dos mais graves massacres cometidos há cerca de duas décadas em Medellín.

Os assassinatos em uma favela da cidade, cometidos sob ordem do presidente Álvaro Uribe, voltaram ao noticiário no fim do ano passado, quando uma equipe de Unidade de Buscas de Pessoas Desaparecidas vinculada à Jurisdição Especial para a Paz confirmou a descoberta de corpos enterrados em um terreno abandonado conhecido pelo nome de escombreras, por ser destino de entulhos e estar situado em uma região montanhosa. O local era apontado, com especial ênfase pelo coletivo “Mulheres Caminhando pela Verdade”, como o cemitério clandestino no qual teriam sido despejados corpos assassinados durante a Operação Orión, de outubro de 2002. “Por muito tempo nos tratavam como loucas, mas sabíamos o que estávamos falando”, afirma Luz Amparo Mejía, integrante do coletivo, que ainda hoje procura familiares desaparecidos.

Realizada com a participação de paramilitares, militares e policiais, a operação teve como objetivo, segundo a versão oficial, recuperar o controle territorial da Comuna 13, dominada por células guerrilheiras da extinta Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e do Exército de Libertação Nacional (ELN), ainda ativo. O saldo da ação deixou, estima-se extraoficialmente, quase cem mortos e outros cem desaparecidos, muitos dos quais inocentes, segundo relatos de moradores da região. “Estamos expressando ao mundo que houve crimes muito graves que precisam ser investigados. Muita gente desconhecia o que aconteceu e por muito tempo houve morosidade das instituições, mas a resistência do coletivo finalmente trouxe resultados”, celebra a missionária Rosa Cavidad, moradora há mais de 50 anos na comuna.

À época Uribe havia acabado de tomar posse para seu primeiro mandato presidencial, com a promessa de adotar a repressão como estratégia de segurança. O relatório da Comissão da Verdade colombiana classifica o episódio como a maior ação militar realizada no perímetro urbano durante uma das fases mais agudas do conflito armado no país. Entre os crimes cometidos pelos agentes e paramilitares constam prisões arbitrárias e seletivas e ocultação de cadáveres. “A comuna estava tomada por grupos narcoguerrilheiros em toda a sua extensão. Havia sequestros, corredores de armas e drogas, delinquência generalizada, deixando a população amedrontada. Sei disso, pois vivia há cinco minutos do local. Uribe foi o presidente que enfrentou essa barbárie. Sem essa decisão, ­Medellín não seria o que é hoje. Não há provas confirmando que os corpos encontrados são ligados a essa operação, que considero espetacular”, defende o vereador Andrés ­Rodríguez, do direitista Centro Democrático. Para ­Alejandro Toro, deputado pelo estado da ­Antioquia, do qual ­Medellín é capital, da coalizão Pacto Histórico, a comoção só terá efeito se desaguar em punições. “A Colômbia foi condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violações múltiplas. A Justiça avançou nas investigações sobre militares de alta patente envolvidos na Órion, mas há uma dívida enorme perante as famílias afetadas em relação aos responsáveis.”

Há duas décadas, um coletivo de mulheres luta para encontrar os corpos dos desaparecidos

A recente descoberta dos corpos e a disputa de versões sobre o assunto ganharam as ruas – e os muros – de diferentes cidades, com a mobilização de diversos grupos de artistas e movimentos sociais. A expressão las cuchas, forma carinhosa para se referir às mães, avós ou tias, tien razón passou a ser vista em Cali, Bucaramanga, Barranquilla e Cartagena, entre outras, depois de o movimento ganhar força ao ser sabotado por prefeituras e reacionários que apagavam ou borravam as inscrições. “Historicamente, a arte urbana é uma ferramenta para enfrentar o silenciamento e o negacionismo impostos pelos verdadeiros responsáveis pela guerra em nossa nação. A memória individual e coletiva é um terreno de disputa cotidiana, no qual permanecemos e nos expressamos para exigir justiça”, filosofa a estudante Natália ­Villamizar, que pintou um dos muros em Bogotá.

Não há prazo para revelar a identidade dos corpos encontrados. Além das buscas no terreno baldio, a Jurisdicción Especial para la Paz (JEP) atua em uma série de frentes de trabalho, incluindo o escândalo dos falsos positivos, marcado pelo assassinato de cidadãos apontados falsamente como guerrilheiros por militares que eram premiados por essas mortes. O órgão estima 6,4 mil vítimas civis.

A discussão sobre episódios do passado ocorre num momento delicado do presente. O presidente Gustavo Petro, ex-guerrilheiro, prometeu na posse a paz total e abriu novas negociação com as dissidências armadas, sobretudo a ELN. O diálogo foi encerrado no início deste ano, após nova escalada de violência na região de Catacumbo, nas proximidades da fronteira com a Venezuela, marcada por uma crise humanitária que provocou o deslocamento forçado de mais de 30 mil habitantes, dentre os quais povos indígenas locais, afora os altos índices de assassinatos registrados em janeiro. “Necessitamos de soluções negociadas, porém a estratégia implementada, apesar de ser parte de um bom princípio, contém erros como a abertura de várias mesas de negociação paralelas e a discussão sobre muitos pontos, o que pode gerar anos de ­debates. Com as Farc estabeleceram-se cinco cláusulas sobre as quais se trabalhou. Por outro lado, a guerra atual se dá mais pelo controle territorial de zonas sensíveis, onde muitas vezes se estabelecem rotas de narcotráfico, mineração ilegal, exploração petrolífera e tráfico de pessoas. Neste momento, e por essas razões, a abordagem militar apresenta-se como a mais adequada, até mesmo porque a ELN não parece interessada na paz”, diz o jornalista Jairo Andrés Vargas. •

Publicado na edição n° 1348 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘As mães têm razão’

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Last Update: 06/02/2025