“A inteligência é entender antes de afirmar.” (Jean-Luc Godard)
Reza a Constituição Federal de 1988:
Art. 164. A competência da União para emitir moeda será exercida exclusivamente pelo Banco Central.
§ 1º É vedado ao Banco Central conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira.
§ 2º O Banco Central poderá comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional, com o objetivo de regular a oferta de moeda ou a taxa de juros.
Arriscamos a pele exercendo a ousadia de cuidar das operações compromissadas, transações interbancárias amparadas em títulos públicos. Nessas transações financeiras, o Banco Central do Brasil compromete-se a comprar ou vender títulos públicos federais, com o propósito de controlar as reservas bancárias e, assim, manter a taxa Selic no patamar fixado pelo Comitê de Política Monetária (Copom).
Se há excesso de reservas bancárias – em bom português, excesso de dinheiro nas tesourarias bancárias –, a pletora de monetária pode induzir uma redução das taxas de juro de mercado e, portanto, o custo do crédito, comprometendo a execução da política monetária. A autoridade monetária vale-se das operações compromissadas para retirar essa moeda dos bancos, mediante a utilização de títulos públicos federais.
Esses títulos já estão abrigados na carteira do Banco Central e não correspondem à criação de dívida nova. Com a garantia de recompra no prazo combinado, os títulos saem e retornam à carteira do Banco Central. Títulos Boomerang. Uma operação altamente lucrativa para o setor bancário com risco zero, garantida pelo Banco Central do Brasil.
Dados do Banco Central do Brasil mostram que, em 2023, o valor diário médio das operações compromissadas de um dia (Overnight), atingiram cerca de 3 trilhões de reais. Essas operações têm o compromisso de recompra pela autoridade monetária no prazo de um dia, lastreada em títulos públicos federais.
Em 15 de junho de 2020, a economista Daniela Gabor participou de uma audiência pública sobre as respostas à Covid-19 na Comissão de Economia do Parlamento Europeu. Entre os mitos que Daniela procurou desbancar estava a ideia de que os Bancos Centrais ultrapassaram seu mandato com intervenções desproporcionais nos mercados de títulos públicos, minando as regras fiscais.
A divisão pré-crise entre as políticas monetária e fiscal é uma ficção insustentável
“Através de uma lente macrofinanceira, este argumento é simplesmente errado. Se perguntarmos como a estrutura financeira privada e as políticas macroeconômicas interagem, fica claro que as mudanças evolutivas nas finanças europeias juntaram as políticas monetárias e fiscais. A divisão pré-crise das funções macroeconômicas – política monetária e política fiscal – é uma ficção que não podemos mais sustentar. Consideremos o mercado monetário: para bancos europeus e investidores institucionais, o mercado de repos (as ditas compromissadas, no jargão brasileiro) é de 7 trilhões de euros. Dois em cada três euros emprestados no mercado repos usam títulos soberanos emitidos por integrantes da Zona do Euro (Alemanha e Itália são os maiores) como garantia. A criação de crédito privado – o pão e a manteiga das operações do BCE – depende fundamentalmente de títulos soberanos, e assim da política fiscal.”
É necessário observar que a autoridade monetária tem total liberdade de fixar o prazo do compromisso de recompra. Não pode ser discriminada como dívida pública, muito menos como financiamento do Estado via Tesouro Nacional. Então, por que é contabilizada como passivo – dívida pública – se não é instrumento de política fiscal?
As relações entre as finanças públicas, a gestão monetária e o setor financeiro privado não são “externas”, são orgânicas e constitutivas.
Nas crises, os agentes econômicos correm sofregamente para os títulos públicos como reservas de valor. O economista Emmanuel Fahri ensina o básico: “As famílias e as empresas precisam provisionar dinheiro. As instituições financeiras precisam de garantias. Em tempos de normalidade, essas reservas de valor assumem muitas formas, como dinheiro, depósitos bancários, títulos do Tesouro, e também títulos corporativos, ações, ou ativos reais, como imóveis, terras e ouro, entre outros”. Nas crises, emergem os títulos públicos como garantidores em última instância da riqueza privada.
“A dificuldade real não reside nas novas ideias, mas em conseguir escapar das antigas.” (Keynes)
As melhores práticas internacionais de política monetária privilegiam os depósitos voluntários para evitar a acumulação de dinheiro nas tesourarias dos bancos. Isso vai associado à possibilidade de a autoridade monetária atuar na curva de juros de curto prazo.
A lei de 15 de julho de 2021 autoriza o Banco Central do Brasil a receber depósitos voluntários de instituições financeiras. Assim como as operações compromissadas, os depósitos voluntários têm o objetivo de controlar as reservas bancárias, com uma diferença essencial. Os depósitos são remunerados com a taxa de juros, dispensando a compra e venda de títulos públicos federais. O Banco Central define uma taxa de remuneração e as instituições financeiras podem depositar voluntariamente o excesso de oferta de moeda num prazo determinado. O valor diário médio de depósitos voluntários em 2023, segundo o Bacen, foi de 83,5 bilhões de reais.
O elo perdido da modernidade será que um dia chega nas terras onde cantam os sabiás? Mais que na hora de acabar com as descompromissadas! Descompromisso com as melhores práticas de política monetária, sair de 1988 e chegar ao século XXI!
Um projeto de emenda constitucional ao artigo 164 propõe o fim das operações compromissadas, ao definir os depósitos voluntários como instrumentos de controle das reservas bancárias. A regulação brasileira ignora a natureza das relações indissociáveis entre o Banco Central e o Tesouro na gestão da política monetária. O bolo da cereja é a vedação à autoridade monetária de operar na curva de juros, na contramão da grande maioria dos Bancos Centrais no mundo. Urgência nacional!
“Para um cabalista, nós vivemos na escuridão, incapazes de ver a maior realidade, mesmo ela estando aí. Ignorando a outra, tomamos essa visão do mundo como a única possível realidade.” (Michael Laitman) •
Publicado na edição n° 1348 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Operação descompromissada’