Viajar pelo Brasil em transporte coletivo não é fácil. Desde a inauguração da Estrada de Ferro Mauá por Dom Pedro II, em 1854, a até hoje inacabada malha ferroviária nacional oferece poucas opções de viagens de passageiros. O avião popularizou-se nas últimas décadas, a partir do primeiro mandato do presidente Lula, mas continua inacessível à maioria. Restam, nos casos das conexões intermunicipais e interestaduais, os ônibus, regulares ou clandestinos. A predominância do modal rodoviário não se traduz, no entanto, em serviços satisfatórios, com preços acessíveis, flexibilidade, respeito ao consumidor e concorrência.

Cerca de 80% do mercado nacional está nas mãos de sete empresas, que dividem entre si as linhas e os trajetos mais lucrativos. Em geral, resistem à modernização e à entrada de concorrentes. Os avanços tecnológicos levaram, porém, ao nascimento de um novo tipo de companhia, baseadas na venda de assentos e no fretamento de ônibus online. Cada vez mais popular na Europa e nos Estados Unidos, esse tipo de serviço esbarra no Brasil em um forte lobby e em interesses particulares nos corredores de Brasília – inúmeros parlamentares são proprietários ou têm ligações com viações. A batalha entre as companhias tradicionais e as digitais intensificou-se a partir de 2014, quando a então presidenta Dilma Rousseff iniciou as discussões públicas para adaptar o setor às novas demandas. Após idas e vindas, no governo e na Agência Nacional de Transporte Terrestre, o Estado engatou uma marcha à ré. Alterações sensíveis no marco regulatório e disputas judiciais têm atrasado, quando não inviabilizado, a ampliação da oferta e a chegada de novos competidores que poderiam desembocar na redução dos preços das passagens e na melhora da qualidade dos serviços. Os principais alvos dos lobistas são a FlixBus e a Buser.

Responsável por estabelecer o marco regulatório após a entrada em vigor, em 2019, das normas que substituíram o antigo regime de permissão por autorizações, nas quais basta as empresas cumprirem os requisitos operacionais exigidos, a ANTT tornou-se um entrave à modernização. Até agora, sem maiores esclarecimentos, a agência apresentou três versões distintas de regulamentação. A mais recente, de 2023, proíbe a “subautorização”, termo utilizado para definir o serviço quando uma empresa vende passagens em ônibus de terceiros. Além disso, em abril do ano passado, o órgão abriu um processo administrativo contra a ­FlixBus, fundada na Alemanha e com operação em mais de 39 países, e outras oito empresas parceiras pela prática que, embora vedada pela ANTT, não é especificada na atual lei do setor. A denúncia da “subautorização” partiu da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros, representante de concessionárias de longa tradição nas estradas brasileiras, entre elas ­Cometa, Gontijo, Águia Branca, Progresso, Guanabara e Viação Garcia. Embora os associados também operem em parceria por meio de um sistema próprio de venda ­online, o ClickBus, a Abrati reclama de falta de isonomia regulatória que permite às novas concorrentes praticar ­dumping, preços abaixo do mercado com o intuito de prejudicar a concorrência.

Empresas como a FlixBus e a Buser, com tarifas mais baixas, enfrentam restrições para expandir a oferta

Em dezembro passado, o diretor-presidente da ANTT, Rafael Vitale, ordenou uma operação de fiscalização contra a ­FlixBus em 26 terminais rodoviários de 13 estados. Três dias antes do Natal, uma decisão cautelar da Justiça Federal em favor de uma ação civil pública movida pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) determinou a suspensão do processo administrativo e a anulação, pela agência, dos atos relativos à investigação. Apesar da decisão judicial, Vitale convocou a empresa e os parceiros para uma reunião, em janeiro, na qual pediu acesso aos contratos firmados entre as partes. Uma documentação sigilosa, argumenta a Flix. “Pedir para ver o nosso contrato não faz muito sentido, essa definição tem de valer para todo o setor. Fizemos uma apresentação com pormenores da nossa atividade, que a ANTT conhece desde 2022”, diz Andrea ­Mustafa, diretora de Relações Governamentais e Institucionais da companhia.

A Buser enfrenta percalços parecidos. Em outubro, o TRF–6 anulou a sentença de 2022 que desobrigava a empresa a se submeter à fiscalização da agência reguladora. Um mês depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou, no entanto, improcedente a ação movida pelas Empresas Reunidas Paulistas de Transporte e afirmou que o serviço prestado pela Buser, de venda de assentos e fretamento de ônibus, é diferente do transporte coletivo de passageiros e não deve ser enquadrado como tal. Em nota enviada a ­CartaCapital, a ­Buser afirma “defender um ambiente jurídico-regulatório favorável à abertura, tanto no serviço de linhas fixas quanto em relação aos novos modelos, a exemplo do fretamento colaborativo legalmente reconhecido na maior parte dos estados e nos principais tribunais do Brasil”. A companhia afirma ver com preocupação o conteúdo do novo marco regulatório proposto pela ANTT. “A resolução aprovada impõe novas barreiras que vão dificultar e postergar a entrada de novas empresas, contrariando o regime de autorização definido para o setor, conforme determinado pela legislação e até validado pelo STF”, prossegue a nota

A FlixBus afirma não ser contra uma regulação, mas diz esperar um marco coerente com a realidade atual. “O regime de autorização começou a ser discutido em 2014, justamente porque o mercado não conseguia fazer as licitações, as empresas sempre arrumavam um jeito de brecar, impugnando uma licitação ou impedindo alguma coisa porque não lhes era confortável. Elas estão ali, nas divisões que fizeram das linhas entre si, há décadas. Tem empresa centenária, o negócio vem de muito tempo”, afirma Mustafa.

Sem proteção. Os passageiros não têm para onde correr. Quanto mais distante a cidade dos centros urbanos, piores são as opções disponíveis – Imagem: Wesley Pontes/Prefeitura de Porto Velho e Tânia Rêgo/Agência Brasil

A Amobitec pretende esperar o posicionamento da ANTT até o fim do prazo estipulado pela Justiça, para decidir como prosseguir na batalha jurídica. “O Ministério Público concordou com todos os argumentos da nossa ação e afirma que a resolução que regulamenta o mercado não atende ao determinado pelo Supremo Tribunal Federal e está privilegiando as empresas que atualmente operam nesse mercado”, diz André Porto, diretor-executivo da entidade. A resolução, entende a associação, impede a concorrência e prejudica as empresas entrantes. “A consequência prática disso é que as empresas operam em regime de oligopólio ou monopólio, que é pior ainda, praticando os preços que querem e prestando um serviço ao consumidor que poderia ter um nível muito melhor, caso a gente tivesse uma efetiva concorrência. Quando o consumidor não tem escolha, vai com o que tem, e paciência.”

A ANTT, avalia Porto, chegou a promover uma abertura “um pouco mais satisfatória”, entre 2019 e 2020, quando foram autorizadas mais de 7 mil novas linhas. “Isso dá uma ideia da carência existente no setor.” A pretexto de regulamentar o conceito de viabilidade econômica previsto na lei, o órgão regulador decidiu reavivar o regime de permissão que não mais existe. “Em qualquer mercado sujeito ao regime de outorga mediante autorização, basta à empresa atender aos requisitos operacionais e requerer a operação. A autoridade reguladora é obrigada a conceder esse mercado para exploração”, acrescenta o executivo.

Ex-integrante do extinto Núcleo de Mobilidade do Instituto de Defesa do Consumidor e especialista no tema, Rafael Calabria afirma que o Brasil, se comparado ao resto do mundo, convive com preços altos nas passagens rodoviárias. “Em muitos países, o transporte ferroviá­rio costuma ser um pouco mais caro, enquanto os ônibus oferecem algo mais popular e barato. Aqui não há essa diferenciação. O preço é alto e um dos motivos é a cartelização do setor, além de uma questão de fundo, o abandono da governança. Não existe uma gestão nacional ou mesmo estadual dos transportes rodoviários.”

As passagens de ônibus no Brasil são caras e a qualidade do serviço é abaixo da crítica

A contratação de qualquer empresa – seja a Cometa, a 1001 ou a FlixBus – é feita por autorização, diz Calabria. “Literalmente, esse empresariado faz o que quer e opera as linhas que acha vantajosas. A ANTT faz uma coordenação, mas não chega a ser uma governança. A cartelização impede uma concorrência plena, mas é um setor totalmente desregulado em termos de controle de qualidade.” Falta, insiste o especialista, criar um plano nacional de governança para os transportes rodoviários: “É preciso definir níveis de atendimento para os municípios distantes. Para o Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte isso funciona relativamente bem, mas para as cidades pequenas não existe um plano de cobertura de transporte intermunicipal”. Seria necessário ainda abandonar o conceito de viabilidade econômica. “O transporte é um serviço essencial, um direito social, precisa ter um bom nível de serviço, e o governo deve buscar formas de custeá-lo, independentemente da arrecadação tarifária ou de uma linha ser rentável ou não”. Nenhuma solução, alerta o especialista, virá sem recursos públicos. “Mas todo investimento precisa ser feito baseado em padrões de qualidade que devem ser estabelecidos para cidades menores e para as grandes também. É o custeio público que vai gerar uma tarifa acessível, baseado em nível de serviço, não só na lotação.” Outra necessidade urgente para o País é discutir o transporte ferroviário: “Ele é essencial para enfrentar a crise climática, atender às linhas de maior demanda e ser o eixo estrutural de uma rede de transportes intermunicipal. Esse tema está completamente abandonado no Brasil”.

Quanto mais fechado o mercado, ressalta Porto, maior o incentivo ao transporte clandestino. “Com uma efetiva abertura, haverá empresas interessadas em atender a mercados que hoje não são servidos ou disputar regiões que hoje têm uma concorrência muito baixa, com uma ou duas empresas operando.” Caso houvesse essa preocupação por parte do órgão regulador, diz o diretor da ­Amobitec, caberia uma intervenção regulatória para criar incentivos para as empresas atenderem a mercados menos atrativos, entre eles a utilização de ônibus de menor capacidade. “Estimular a concorrência é o papel da ANTT, e não proibir as empresas de operar onde há a possibilidade de disputar mercado. O papel da agência reguladora está sendo invertido.” •

Publicado na edição n° 1348 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Freio de mão’

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Last Update: 06/02/2025