Quem teme a DeepSeek? Abalo no Vale do Silício e desafio à hegemonia estadunidense
por Lauro Accioly Filho
[Informe OPEU] [China] [DeepSeek] [Inteligência Artificial]A entrada da startup chinesa de chatbot de Inteligência Artificial, a DeepSeek, causou um impacto significativo no valor de mercado das Sete Magníficas – as gigantes da tecnologia dos EUA: Apple, Microsoft, Amazon, Nvidia, Alphabet, Meta e Tesla. A movimentação levou investidores a reavaliarem o papel dessas empresas, resultando em uma perda de US$ 643 bilhões em um único dia. Como reflexo, o índice Nasdaq, referência para o setor de tecnologia na Bolsa de Nova York, fechou o dia (27/1/2025) em queda de 3,07%, a 19.341,83 pontos.
No contexto político dos Estados Unidos, esse evento coloca em xeque a guerra comercial que Donald Trump busca intensificar com a China. O próprio presidente declarou que a ação da empresa chinesa serve como um alerta para que as gigantes da tecnologia americanas despertem e reajam. O episódio vem sendo chamado de “momento Sputnik” por remeter à corrida espacial entre EUA e União Soviética, destacando um novo cenário em que os Estados Unidos podem ter subestimado o potencial chinês no desenvolvimento de Inteligência Artificial avançada.
O cenário assume contornos de uma disputa tecnológica digna da Guerra Fria, à medida que diferentes narrativas reforçam essa perspectiva — incluindo a suposição de que a rival chinesa estaria trapaceando e violando regras de propriedade intelectual. No entanto, essas acusações se sustentam de forma frágil, pois o desenvolvimento dessas tecnologias ocorre, em grande parte, por meio de código aberto, permitindo que outros desenvolvedores testem e validem as capacidades descritas.
Além disso, após alcançar o topo da App Store da Apple como o aplicativo gratuito mais bem avaliado nos EUA e ganhar grande destaque na Play Store do Google, a empresa foi alvo de um ataque malicioso em larga escala.
Rivalidade tecnológica: os chineses são perigosos, segundo gabinete de Trump
No documento elaborado pela Heritage Foundation – o think tank que orienta as políticas do governo Trump –, foram encontradas 683 menções à China, em contraste com apenas 108 referências à Rússia, com ênfase nos embates tecnológicos. A China é considerada um desafio em diversos aspectos, especialmente na disputa comercial por semicondutores — um setor bilionário no comércio global. Em 2022, o país foi responsável por quase 42% das exportações desse mercado, enquanto os Estados Unidos, com menos de 5%, enfrentam uma posição vulnerável. A produção, por sua vez, é amplamente dominada pela China e outros países asiáticos, reforçando a dependência global da manufatura oriental.
A importância dessa indústria reside no papel fundamental dos semicondutores, que são a base das modernas tecnologias da informação e comunicação (TIC). Esses componentes vão desde sensores simples até circuitos integrados complexos, como processadores e memórias. A principal preocupação dos Estados Unidos, no entanto, está no impacto estratégico dos semicondutores no setor de defesa. A globalização dessa indústria ocorreu de forma desigual, ficando majoritariamente concentrada em um seleto grupo de aliados militares, incluindo Coreia do Sul, Europa, Japão e Taiwan. Diante desse cenário, o avanço da China na produção de semicondutores desperta apreensão em Washington, especialmente pelo potencial uso dessa tecnologia em aplicações militares.
![The Future Is Asian: Global Order in the Twenty-first Century | Amazon.com.br](https://m.media-amazon.com/images/I/61RM84r36JL._AC_UF1000,1000_QL80_.jpg)
Parte desse cenário ressoa no que muitos apontam como uma crise na liderança hegemônica dos Estados Unidos, inserida no debate sobre a ascensão do chamado “Século Asiático” – termo cunhado por Parag Khanna em seu livro The Future is Asian (Weidenfeld & Nicolson, 2019). A obra traz uma análise aprofundada sobre o novo papel da Rota da Seda por meio da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative), que impulsiona um processo de “asianização global”, especialmente no setor tecnológico, atraindo a atenção de investidores ao redor do mundo.
Esses desafios agravam a disputa para os Estados Unidos, pois suas empresas de tecnologia ainda enfrentam dificuldades para lidar com orçamentos limitados, que prejudicam sua capacidade de promover alto desempenho, concedendo, assim, uma vantagem significativa às empresas chinesas.
O cenário se torna mais evidente quando observamos a Meta, que criou “salas de guerra” de engenheiros com o objetivo de entender como a empresa chinesa R1 conseguiu desenvolver suas tecnologias de IA, economizando custos. Mesmo diante das restrições dos EUA à exportação de componentes de alta tecnologia para a China, como o chip H100 da Nvidia (de ponta mais alta) e o chip H800 (de ponta mais baixa), ambos amplamente usados em IA, a China conseguiu superar esses obstáculos e avançar no setor. Essas restrições foram implementadas na administração Biden, com foco em impedir a capacidade da China de acessar e produzir chips que podem ajudar a desenvolver Inteligência Artificial para aplicações militares ou ameaçar a segurança nacional dos EUA.
O fato de ter sido construído por uma fração do custo, aparentemente com chips menos avançados e consumindo significativamente menos energia dos data centers, gerou um choque no Vale do Silício. As gigantes da tecnologia dos EUA apostaram bilhões de dólares para se manter na liderança, acumulando chips de ponta e construindo enormes data centers. Agora, porém, seu modelo de negócios está sendo questionado pelos especialistas financeiros de Wall Street. Vale destacar que o custo de produção dessa tecnologia é um fator essencial, especialmente no atual cenário das cadeias globais de valor, onde empresas e investidores priorizam negócios mais rentáveis.
Autoridades dos EUA estão avaliando as implicações de segurança nacional do aplicativo DeepSeek, afirmou a secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt. No entanto, permanece incerto se Trump manterá sua posição sobre o impacto da startup chinesa ou se adotará uma postura mais flexível, como fez com o TikTok. Inicialmente, o então candidato e ex-presidente classificou a plataforma como uma ameaça à segurança nacional e fez duras críticas à empresa. Porém, após os resultados das eleições de 2024 e seu próprio sucesso de engajamento com o público jovem no TikTok, ele reconsiderou sua visão sobre a gigante chinesa de mídia social.
É possível controlar o progresso chinês?
Outro aspecto dessa conjuntura é o intenso debate gerado pelo desenvolvimento do DeepSeek sobre a eficácia dos controles tecnológicos dos EUA, evidenciando uma fragilidade significativa no poder de coerção econômica norte-americano. Além disso, essa não é a primeira vez que a China supera as restrições impostas por Washington. No final de 2023, por exemplo, especialistas em política externa dos EUA ficaram surpresos quando a Huawei anunciou o lançamento de um smartphone equipado com um chip de sete nanômetros — algo que, em tese, deveria ter sido impossível, devido às restrições de exportação.
A situação se agrava com o contrabando em larga escala de chips, especialmente em um mercado movimentado em Shenzhen, no sul da China, e com empresas comercializando on-line os chips da Nvidia, apesar das restrições de exportação impostas pelos EUA. O problema já existia durante a administração Biden, mas, apesar dos esforços, não se conseguiu implementar uma regulamentação abrangente para conter o contrabando. Resta saber como o governo Trump lidará com essa questão. Em uma ordem executiva assinada em seu primeiro dia no cargo, Trump determinou que sua equipe revisasse o sistema de controle de exportação dos EUA, incluindo medidas para “identificar e eliminar brechas nos controles existentes”.
O outro impacto desse boom chinês é que a DeepSeek tem divulgado abertamente detalhes sobre a construção de seu modelo, facilitando para empresas na China e ao redor do mundo a replicação de sua abordagem de baixo custo. Isso significa que o desenvolvimento e a operação de IA poderão se tornar significativamente mais baratos e menos exigentes em termos de consumo de energia — beneficiando desde hiperescaladores nos EUA até pequenas empresas do Centro-Oeste, hackers norte-coreanos e militares russos. O efeito multiplicador do modelo chinês de baixo custo já se reflete na intenção do Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil de desenvolver modelos de Inteligência Artificial no país inspirados na DeepSeek.
Além disso, o avanço da DeepSeek sugere que a China poderia estar ainda mais à frente em Inteligência Artificial, se não fosse pelos controles de exportação impostos pelos EUA. Ainda assim, a empresa mostra que, mesmo sob sanções, é capaz de liderar o desenvolvimento de IA com recursos limitados. Seu modelo acessível oferece uma alternativa para pesquisadores e desenvolvedores, especialmente no Sul Global, permitindo que superem restrições financeiras e tecnológicas na corrida pela inovação em IA.
Lauro Henrique Gomes Accioly Filho é pesquisador colaborador do OPEU e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), com período “sanduíche” na American University, em Washington, D.C. Contato: [email protected].
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 30 jan. 2025. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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