Uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu as transferências de recursos provenientes de dois fundos privados para o financiamento do Programa Pé-de-Meia, que oferece incentivo financeiro a estudantes do Ensino Médio visando à sua permanência na escola.

O Pé-de-Meia, um dos programas centrais do Ministério da Educação, é financiado pelo Fundo de Custeio da Poupança de Incentivo à Permanência no Ensino Médio, o Fipem, fundo privado administrado pela Caixa Econômica Federal com participação da União, de pessoas físicas e empresas públicas e privadas na qualidade de cotistas.

O patrimônio do Fipem é integralizado pela participação de outros dois fundos privados: o Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (Fgeduc), atualmente administrado pela CEF; e o Fundo Garantidor de Operações (FGO), administrado pelo Banco do Brasil. As Leis n. 14.995/2024 e 15.076/2024 autorizaram transferências de até 10 bilhões de reais dos valores não utilizados desses dois fundos para o Fipem.

No entanto, o Acórdão n.º 61/2025 do TCU, relatado pelo ministro Augusto Nardes, suspendeu o repasse de recursos ao Fipem a partir dos fundos Fgeduc e FGO. A decisão pode inviabilizar a continuidade do Pé-de-Meia. A Corte atendeu a uma representação que denunciava a falta de transparência do MEC com relação à execução do Programa e a possibilidade de ele se tornar um mecanismo extraorçamentário de financiamento das políticas educacionais. Em síntese, o TCU considerou que a transferência direta entre fundos privados ocorre à margem do orçamento público, pois os valores não passam pela Conta Única do Tesouro Nacional (CUTN), ficando imunes à regra fiscal vigente.

O campo popular não pode cair na chantagem de que criticar cortes de gasto social só alimentaria o moinho eleitoral da extrema-direita

A decisão de Nardes tem sido analisada à luz de sua atuação política pregressa. Em 2022, vazou um áudio em que ele supostamente demonstrava familiaridade com movimentações militares ligadas à tentativa de golpe contra a eleição de Lula. A sugestão de que o governo federal estaria praticando algo semelhante a uma “pedalada fiscal” com o Pé-de-Meia provocou reações duras e acusações de golpismo contra o ministro.

As transferências entre fundos privados questionadas pelo Acórdão são, de fato, um mecanismo extraorçamentário para financiar a política educacional — um “orçamento paralelo”, por assim dizer —, mas foram rigorosamente chanceladas pelo Congresso Nacional. Em outras palavras, são legais. Mas também sinalizam uma preocupante mudança nas formas de financiamento da educação pública no país. Mudança que o próprio governo federal vem ajudando, gradativamente, a desenhar e implementar.

A escolha pelo ajuste fiscal

A opção por um arranjo financeiro que envolve fundos privados para garantir o financiamento do Pé-de-Meia decorre das restrições impostas pelo regime de austeridade fiscal do próprio governo federal. Sem um orçamento público robusto para as políticas sociais, surgem soluções, digamos, “criativas” — de varejo e de atacado — para tentar sustentar ao menos uma parte da agenda social que compôs a plataforma eleitoral de Lula.

Entre as soluções “de atacado” defendidas pelo governo, destacam-se os esforços do BNDES para promover, em todo o país, um programa de concessão de “atividades não pedagógicas” à iniciativa privada, sob a contrapartida de construção de unidades escolares por essas empresas (uma estratégia já adotada pelo governo de São Paulo).

Assim, a defesa explícita da privatização de escolas — que costumava ser bandeira de governos de direita — ganhou ares de “inovação” no governo Lula 3, como forma de garantir um financiamento “público” para erguer escolas e creches em municípios pobres sem ampliar o orçamento. Ou seja: em vez de utilizar recursos públicos diretamente em prol da população, transfere-se dinheiro a empresas para que elas construam prédios e prestem serviços ao povo por 20 ou 25 anos.

Já no campo das soluções “de varejo”, emendas parlamentares – essa excrescência antirrepublicana que alimenta balcões de negócios e trocas de favores nos níveis municipal, estadual e federal – já vêm sustentando obras (e até atividades básicas) de campi de universidades e institutos federais Brasil afora, no esquema cada-um-por-si.

Como falar em expansão do sistema federal se o ajuste fiscal inviabiliza a construção de prédios, a renovação de instalações e a expansão de cursos no ensino superior público? E o aumento digno para os salários do funcionalismo? Para além de militares e do Poder Judiciário, nem pensar.

Por fim, o compromisso com a austeridade fiscal levou o governo federal ao extremo de tentar, na tramitação da PEC do corte de gastos que aprovou o último ajuste, garfar até 20% da complementação da União ao Fundeb para financiar outro carro-chefe do MEC fustigado pela falta de orçamento: o Programa Escola em Tempo Integral.

O governo conseguiu a metade do que pretendia (e somente para o ano de 2025), mas abriu um precedente perigosíssimo. Para salvar o orçamento de um programa federal — e manter a capacidade do MEC de induzir políticas educacionais em estados e municípios — recorreu ao fundo público constitucional que financia a educação básica, o Fundeb (que nem foi plenamente implementado), e o transformou numa espécie de “caixa eletrônico”.

A grita do mercado, no final de 2024, contra o ajuste fiscal do governo Lula, considerado suave demais pela economia improdutiva nacional, deu mostras definitivas de que nem o mais desumano dos ajustes aplacará a gula rentista. Por isso, o campo popular não pode cair na chantagem de que criticar cortes de gasto social pela esquerda só alimentaria o moinho eleitoral da extrema-direita.

Vencer as eleições de 2026 é fundamental, mas também é importante que essa vitória não seja acompanhada por uma derrota fragorosa dos direitos do povo em favor das elites econômicas que serviram de esteio para o bolsonarismo até ontem e servirão novamente amanhã. Se os rentistas da Faria Lima não se envergonham de bradar “abaixo aos direitos do povo”, o povo precisa ter o direito de gritar “abaixo à Faria Lima”.

Enquanto as soluções extraorçamentárias evidenciam a gravidade do ajuste fiscal — com o beneplácito do Congresso, frise-se —, o desenho de programas como o Pé-de-Meia revela o pendor do governo Lula por uma concepção de política social bem diferente daquela que impulsionou seus mandatos anteriores: agora, muito mais individualista do que universalista.

A escolha pelo incentivo individual

Em janeiro de 2025, o MEC lançou uma versão do Pé-de-Meia voltada a atrair matrículas para cursos de licenciatura, integrada a um programa mais amplo – o Mais Professores para o Brasil. Esse pacote inclui políticas de estímulo à docência em regiões que sofrem com falta de professores, um exame nacional de acreditação para o magistério, cursos de formação e um programa de “valorização” profissional que oferece cartão de crédito sem anuidade, descontos em hotéis e condições especiais para compra de produtos e equipamentos.

Diferentemente do Pé-de-Meia estudantil, a versão docente será financiada com recursos do orçamento e administrada pela Capes. A lógica de promover mudanças sociais a partir da indução de comportamentos individuais, contudo, é a mesma. No Mais Professores para o Brasil, o comportamento que se pretende incentivar não é a conclusão da educação básica obrigatória, mas a escolha por um curso (Pé-de-Meia Licenciaturas) ou por ingressar na carreira docente em áreas com carência de professores (Bolsa Mais Professores).

Um detalhe importante é que o Pé-de-Meia Licenciaturas beneficiará apenas estudantes matriculados em cursos de Licenciatura presenciais com notas iguais ou superiores a 650 pontos do Enem. Trata-se, portanto, de um programa de atratividade, destinado a modificar o perfil dos estudantes que escolhem cursos de licenciatura. A permanência e a redução das taxas de evasão é um objetivo secundário, restrito ao público-alvo com melhor desempenho do Enem.

Ouvi diversas vezes assessores educacionais de institutos e fundações empresariais defendendo a necessidade de “aumentar o sarrafo” dos processos seletivos para cursos de licenciatura como forma de atrair candidatos com notas mais altas (e, em geral, menos pobres).

Eu e dois colegas testamos essa banalidade elitista e sem lastro, e publicamos em 2023 os resultados da pesquisa em que analisamos alguns efeitos das alterações nas pontuações mínimas exigidas para o ingresso via SiSU em cursos de Licenciatura em Pedagogia de 28 universidades federais entre 2010 e 2017. A conclusão foi que o descompasso entre o nível de exigência nos processos seletivos e o desempenho dos candidatos leva à produção de vagas ociosas; isto é, impede o acesso à universidade pública e esvazia cursos de formação docente.

Considerando esses achados e as pontuações usuais dos ingressantes em cursos de Licenciatura via Enem/SiSU, exigir uma pontuação mínima de 650 pontos como critério de elegibilidade do Pé-de-Meia Licenciaturas é uma aposta arriscada. No limite, o programa poderá vir a beneficiar um número excessivamente restrito de pessoas: a vantagem de receber até 48,3 mil reais por apenas quatro anos de curso será avaliada pelos candidatos elegíveis em relação à perspectiva salarial futura, para a vida toda, em outra carreira. Isso sem contar a possibilidade da realização de dois cursos de graduação em paralelo, para o usufruto do incentivo simultaneamente à garantia de uma outra carreira no futuro. Políticas de incentivo financeiro individual, como é sabido, também estimulam decisões individualistas.

Do mesmo modo que o Pé-de-Meia original não altera efetivamente as condições de permanência dos estudantes na educação básica — já que o benefício funciona como um “prêmio” pela persistência individual em concluir os estudos —, o programa de incentivos para novos professores também não enfrenta as raízes do desprestígio social da carreira docente.

Apesar de a população frequentemente apontar o magistério como uma das profissões mais confiáveis, vê-se os professores como “heróis” que suportam salários indignos e condições de trabalho precárias em nome de uma “missão”. Não por acaso, bombeiros também figuram nesse tipo de ranking de confiabilidade.

Confiáveis, mas desprestigiados, professores seguem cobrando de estados e municípios carreiras e condições de trabalho adequadas e o cumprimento do piso salarial do magistério criado em 2008. Para enfrentar essa realidade naquilo que lhe cabe, o governo federal fez as suas escolhas. Fez o ajuste fiscal, mas criou mecanismos para preservar parte da agenda social, incluindo políticas de permanência e de valorização profissional baseadas na indução de comportamentos, frise-se, individuais.

Em fevereiro de 2024, o presidente Lula afirmou que trabalha para criar “um país de padrão de consumo de classe média, de educação de classe média”. Há poucos dias, ao ser interpelado pela enésima vez sobre a disposição de seu governo para fazer cortes ainda maiores nos gastos sociais, reafirmou seu compromisso pessoal com a responsabilidade fiscal e disse que os empresários, em vez de regatearem aumentos salariais, deveriam encarar os trabalhadores como um público consumidor.

De fato, basta consultar o ReclameAqui para observar o aumento expressivo de queixas sobre o Programa Pé-de-Meia, especialmente sobre problemas de cadastro e atraso no pagamento dos valores devidos. Ou seja, os cidadãos recorrem a uma plataforma de reclamação tipicamente voltada a relações de consumo, o que é sintomático: enquanto o Bolsa Família — uma política distributiva de condicionalidades mais brandas — está vinculado ao sistema de assistência social, o Pé-de-Meia, com condicionalidades mais rígidas, está associado ao sistema bancário.

Independentemente da avaliação que se faça sobre políticas públicas com enfoque comportamental, é inegável que elas afetam a maneira como as pessoas entendem o papel do Estado e das políticas sociais. Dependendo das escolhas tomadas, a “sociedade de classe média” almejada pelo governo — em que a maioria teria uma vida digna (ou, noutra leitura, padrões de consumo considerados dignos) — pode ser a mesma em que o individualismo e os valores de mercado se tornam tão fortes que refundam, na prática, a própria ideia de direitos e cidadania.

Nota: O Fgeduc, com a União como cotista única, foi criado pela Lei n.º 12.087/2009 para aliviar a dificuldade de estudantes do ensino superior em obter fiadores para empréstimos do FIES. Também criado pela mesma lei, o FGO se desdobra em programas de garantia para pessoas físicas e jurídicas financiadas, por exemplo, pelo Pronampe e pelo Desenrola Brasil.

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Last Update: 06/02/2025