Comentário ao post: Entendendo a Solução Pinguela, por Francisco L. Lopes
O Mercado de Bananas e as Reservas Internacionais
por Nathan Caixeta
Recebo pelo WhatsApp um documento intitulado “Entendendo a Solução Pinguela”. A peça é assinada pelo ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes e procura encaminhar soluções para o problema inflacionário recente.
“Pinguela” é uma ponte provisória feita para atravessar um caminho acidentado. No popular, uma “gambiarra”.
A gambiarra proposta por Chico Lopes não foge muito de suas atribuições: pretende segurar a inflação freando, de tempos em tempos, a variação da taxa de câmbio, que impacta decisivamente os preços domésticos, seja na elevação dos custos de importação, seja na equalização entre os preços domésticos e os preços de exportação.
Secundariamente, a gambiarra considera desindexar o salário-mínimo que, segundo reza a peça em questão: “adiciona o aumento defasado do PIB à inflação” (via elevação nos custos de serviços pessoais).
Vamos analisar uma gambiarra por vez.
A primeira pretende autorizar o Banco Central a operar ativamente na taxa câmbio sem estabelecer, no entanto, horizontes fixos ou semi-fixos. Trata-se somente de acomodar a variação do câmbio dentro de um intervalo previsível e, desse modo, impedir choques que afetem sobremaneira os preços de produtos mais sensíveis à taxa de câmbio.
Para isso, o Banco Central deixaria o estoque de reservas internacionais à disposição do freguês, isto é, dos operadores de mercado que transitam entre o mercado à vista e a termo. Segundo a necessidade percebida dentro de determinado intervalo, a “queima” de reservas evitaria a necessidade de elevações pesadas da taxa de juros, constituindo um meio indireto de acomodação das pressões inflacionárias.
A justificativa oferecida pelo economista já é bem conhecida: o custo de carregamento das reservas, determinado pela diferença entre os juros praticados aqui e no mercado internacional. No mundo ideal – dizem, entre uma pinguela e outra – as reservas internacionais são dispensáveis, dado que o diferencial entre os juros internos e externos equivalem ao risco percebido pelos investidores internacionais em alocar sua riqueza aqui ou acolá.
As reservas seriam, então, um “mal necessário”, uma espécie de seguro ao investidor estrangeiro de que caso decida retirar seus recursos do país será compensado na mesma moeda que ele originalmente aplicou em troca de um diferencial de juros imediatamente menor. A “queima” de reservas ao sabor dos operadores de mercado funcionaria como uma antecipação desse seguro ao garantir, em um horizonte previsível, a manutenção dos valores nominais de seus ativos em moeda local.
O economista, infelizmente, escorrega na frágil ponte que pretende construir. Ao conceber as reservas internacionais como um instrumento de troca puro entre ativos denominados em diferentes moedas, o “modelo pinguela” reduz o problema da transferência de recursos internacionais ao funcionamento de uma feira, onde, digamos, bananas e maçãs são equivalentes em uma certa quantidade.
Na feira do Dr. Pinguela, as bananas armazenadas pelo feirante central são trocadas livremente pelas maçãs ofertadas pelos feirantes vizinhos. Em um fim de semana qualquer, todos resolvem fazer bolo de banana, ou simplesmente armazenar uma fonte rica e “escassa” de potássio. Nesse dia, o feirante central, responsável por manter o equilíbrio entre preços e quantidades na feira, será obrigado a liquidar seu estoque de bananas para que, em condições normais de temperatura, pressão (e potássio), maçãs e uvas preservem sua equivalência nominal em determinadas quantidades. A esperança do Dr. Pinguela é que, no dia seguinte, a preferência popular mude para tortas de maçã, repondo a quantidade de bananas, zerando a quantidade de entradas e saídas naquela semana e dando descanso às pobres bananeiras.
Seria conveniente observar as peculiaridades da moeda e dos mercados privados e internacionais de riqueza que nos impede de aceitar a premissa segundo a qual a moeda é um bem como outro qualquer.
Nos caminhos e descaminhos que levaram à constituição do padrão monetário internacional vigente, as atribuições especiais oferecidas a uma única moeda internacional, responsável por assegurar as liquidações internacionais, não são triviais. Elas respondem à forma como se articula a riqueza capitalista a nível global e, no fundo, à própria natureza dessa riqueza, prenhe de uma instituição coletiva que preserve seu valor nominal.
Nos trabalhos preparatórios para a conferência de Bretton Woods em 1944, Keynes demonstrou as fragilidades de um sistema internacional que submete as economias nacionais à órbita de um padrão hegemônico de denominação da riqueza capitalista. Os Pinguelas da ocasião não perceberam, mas a proposta de Keynes, derrotada pelos norte-americanos, não visava apontar qual padrão hegemônico deveria vigorar. Ao contrário, a proposta era de uma moeda celebrada pela comunidade internacional, sem os constrangimentos causados pela utilização do poder detido pelo país emissor da moeda hegemônica como arma geopolítica.
No já longínquo ano de 1979, Paul Volcker, presidente do FED, resolve escapulir da reunião do FMI em Belgrado, para se utilizar do poder do dólar como moeda hegemônica e restituir a soberania norte-americana (naquela altura ameaçada pelos japoneses e contestada pela comunidade internacional). Volcker elevou a taxa de juros dos EUA e, na sequência, obrigou a valorização do Marco alemão e do Iene japonês. Em Pindorama, nossas reservas secaram e chegamos à crise da dívida externa.
Qualquer coincidência com a situação atual instalada pelos discursos e atos iniciais de Donald Trump pode ser, ou não, mera semelhança.
Fato é que a manutenção da hegemonia monetária, por um lado, é um ato geopolítico que permite ao emissor comandar os fluxos de riqueza globais e, por outro, é o salvo-conduto dos possuidores dessa riqueza para transitarem entre os espaços nacionais caçando oportunidades de rentabilizar seus recursos. A chamada “fuga de capitais” não se origina tão somente da comparação entre a liquidez oferecida pela moeda reserva e a rentabilidade dos ativos denominados em outras moedas, mas do poder exercido pelos possuidores de ativos em diferentes moedas de arbitrar as condições em que se dão os fluxos de capitais.
A (mal)dita moeda, em seus lances habituais de escapismo, surpreende os modelos de equilíbrio ao impor as condições de circulação e preservação da riqueza privada. Nenhuma forma particular de riqueza é capaz de sobrepor a garantia oferecida pela moeda (leia-se: emitida primariamente pelo Estado) por um lado, de transformar-se em qualquer outra coisa e, por outro, de reinstalar essa potência permanentemente, a cada ato concreto de transfiguração da riqueza de sua forma privada para a forma coletiva e social.
Essa relação de dependência das formas privadas em relação à forma coletiva e social da riqueza se estabelece no plano internacional mediante as articulações criadas pela emissão primária da moeda hegemônica e o fluxo de capitais privados denominados e ancorados nesse ato indiscutível de poder e soberania particulares de uma nação sobre as demais.
A detenção de reservas internacionais pelos países emissores de moedas não-conversíveis visa, exatamente, a proteção contra os perigos, guinadas e solavancos aos quais estão submetidas as economias nacionais diante das fragilidades da moeda hegemônica em atuar como objeto de desejo privado e forma universal da riqueza.
Imagino não ser necessário relembrar os inúmeros casos em que os desígnios privados em busca de liquidez e rentabilidade se distanciaram tão profundamente da manutenção do bem-estar público que economias foram arrasadas pela ausência de proteções. Na verdade, não precisamos ir muito longe.
Ao lado, a Argentina enfrenta há décadas uma situação que, creio, não podemos qualificar como inusitada. Na ausência de reservas internacionais, sua moeda é um espectro do dólar.
Não quero crer, da mesma forma, que ao supor que “num regime de flutuação cambial a rigor o estoque ótimo de reservas pode ser muito próximo de zero”, Chico Lopes esteja nos recomendando o mesmo destino.
Nos tropeços entre uma banda diagonal e outra, o ex-presidente do BC pôde verificar a agonia de uma economia que contava com parcas reservas cambiais para enfrentar um processo especulativo sistêmico e organizado contra a moeda brasileira em 1999. Na eminência da quebra externa, o Dr. Pinguela retirou as bandas.
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O infame custo de carregamento das reservas cambiais não pode ser encarado como um mero “custo de oportunidade” tomado pelos países emissores de moedas não-conversíveis entre manter e vender suas posições líquidas na moeda reserva. Sua existência é explicada em razão das disfuncionalidades do padrão monetário vigente que obriga a compensação de transações internacionais na moeda-reserva.
A admissão desse “custo” não é fruto de uma escolha como quem opta por ajustar estoques de bananas e maçãs ao gosto do freguês, mas uma imposição que temos a sorte de reunir condições para cumprir.
A segunda gambiarra admitida pelo “modelo pinguela” exige um fôlego menor.
A ideia de desindexar o salário-mínimo também é conhecida. A turma da Cremástica denuncia ferozmente que a valorização do salário-mínimo é uma perigosa fonte de propagação da inflação e do déficit público. Recentemente, o governo se curvou aos esperneios dos denunciantes e limitou a valorização do salário mínimo ao teto do crescimento das despesas permitido pelo Arcabouço Fiscal, isto é, 2,5% em termos reais.
Basicamente, o argumento é que ao elevar a base salarial da população (em termos reais), o governo gera um choque indesejado no custo do trabalho, que é repassado para os preços, especialmente no setor de serviços, onde o custo do trabalho compõe mais imediatamente a estrutura de preços. Ao desindexar o salário-mínimo de uma regra de valorização seria possível amenizar esse mecanismo de repasse, o que contribuiria, inclusive, para a produção de resultados fiscais mais vultuosos.
A saída para a piora das condições de vida que a defasagem entre o custo de vida e os salários representaria é obtida pela hipótese de aumento da renda real do trabalho em um cenário de inflação controlada.
Esse argumento parece sugerir o retorno da política salarial que vigorou durante o regime militar que reajustava os salários a partir de uma estimativa para a inflação no ano seguinte, provocando uma queda severa na renda real do trabalho pela diferença entre a inflação estimada e a observada.
Podemos tomar como possibilidade o falso argumento de que o custo do trabalho no Brasil é elevado, o que deixaria a estrutura de preços no limiar entre o repasse da elevação de salários e a redução das taxas de lucro.
Tomando métricas internacionais, verificamos que o salário-mínimo no Brasil é o menor entre os países latino-americanos, exceção feita à Venezuela, e o 30° na comparação com os países da OCDE.
Verificamos ainda, no cenário recente de queda real de salários durante a gestão Bolsonaro, a permanência da inflação de serviços acima da meta para a inflação cheia, o que nos provoca a procurar uma explicação mais realista para a relação preços-salário mínimo.
Historicamente, a contenção de salários no setor de serviços esteve vinculada à formação do estilo de consumo e de vida das classes médias e elites. A perda real de salários no setor de serviços, sobretudo os de tipo “pessoal”, era integralmente absorvida como renda disponível pelas parcelas da população cujos rendimentos recebiam algum tipo de proteção contra a inflação.
Uma das conquistas elementares da Constituição de 1988 foi a vinculação do salário-mínimo à contribuição previdenciária, o que, imediatamente, estabeleceu o compromisso entre a proteção social e a preservação do poder de compra da base salarial e dos benefícios previdenciários.
Não é possível ignorar a relevância desse mecanismo para o crescimento econômico assistido entre 2003 e 2010, quando o aumento consistente da base salarial em termos reais representou um importante propulsor para o consumo das famílias e a demanda interna. Neste período, manteve-se a diferença positiva entre a inflação de serviços e a inflação ao consumidor, mesmo com a elevação tanto do mínimo quanto da média dos salários nominais acima da inflação.
Estudos recentes, que pretenderam estimar a relação entre o salário-mínimo e a inflação no largo ciclo de valorização do salário mínimo acima da produtividade, mostram que a elasticidade dos preços ao consumidor em relação ao salário-mínimo é baixíssima e só apresenta alguma significância nos setores em que predominam serviços intensivos em mão de obra pouco qualificada. Nestes setores, entretanto, o elevado grau de informalidade e a predominância de baixos salários indicam a existência de mecanismos informais de indexação que respondem menos diretamente ao salário-mínimo do que à elevação do custo de vida.
Diante da trajetória dos salários nominais, que só recuperaram seu patamar pré-crise de 2014 muito recentemente, é difícil, inclusive, corroborar a tese apresentada pelo Banco Central de que a persistência inflacionária se deve, em parte, às pressões invencíveis vindas do mercado de trabalho. Não é razoável supor que o controle de uma inflação constituída no seio de uma grave desvalorização cambial e de mecanismos formais de indexação do qual jamais nos livramos possa ser alcançado através de contenção da demanda, do desemprego e da queda do nível de renda da população.
Ao que parece o BC já tem atravessado sua própria pinguela para perseguir uma meta de inflação que desconsidera completamente a dinâmica dos preços na economia brasileira.
Nathan Caixeta – Mestre em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP e coautor dos livros “Crônicas Antieconômicas” e “Avenças e Desavenças da Economia”.
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