Direitos Ameaçados: Carta Aberta da Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB)
Destinada à Sociedade Civil, Entidades Representativas de Pessoas com Deficiência, Deputados, Senadores, Ministros e ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República.
Nós da Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB), entidade de atuação nacional e internacional focada na defesa dos direitos de 6,5 milhões de brasileiros cegos e com baixa visão, representando 100 entidades comprometidas com a educação, habilitação e reabilitação de pessoas com deficiência visual, reafirmamos, nesta carta, a importância do nosso lema “nada sobre nós, sem nós”, que se traduz como princípio fundamental na garantia e defesa dos direitos das pessoas com deficiência visual.
O objetivo desta carta é alertar que uma das conquistas de direitos das pessoas cegas e com baixa visão pode sofrer significativo retrocesso.
A ONCB está presente de forma ativa em conselhos nacionais e em todos os estados da Federação, representada por seus delegados e por suas entidades afiliadas, que atuam em conselhos estaduais e municipais. Sempre atuamos com o propósito de assegurar os direitos conquistados e avançar na promoção da acessibilidade, inclusão e autonomia das pessoas cegas e com baixa visão.
Reconhecemos que, nas últimas décadas, alcançamos avanços significativos na inclusão e na acessibilidade. Tecnologias assistivas têm desempenhado um papel essencial, possibilitando a conquista de espaços e oportunidades anteriormente inimagináveis. No entanto, reafirmamos que esses avanços não podem ser vistos como suficientes.
Entre um dos pilares fundamentais para a verdadeira inclusão social, destacamos a orientação e mobilidade. Quando uma pessoa cega ou com baixa visão domina essas técnicas, seja com o uso da bengala ou com o auxílio de um cão-guia, amplia-se exponencialmente sua capacidade de exercer o direito fundamental de ir e vir.
Contudo, ainda enfrentamos desafios significativos no cenário brasileiro. As barreiras arquitetônicas persistem em grande parte de nossas cidades, comprometendo a mobilidade e a liberdade de circulação de milhares de cidadãos cegos ou com baixa visão. Tais obstáculos evidenciam que a luta pela acessibilidade plena está longe de ser concluída.
Uma alternativa funcional e de qualidade para a mobilidade é o serviço de cães-guia, cuja eficácia e impacto positivo na autonomia das pessoas com deficiência visual são amplamente reconhecidos. Esses cães são fruto de processos rigorosos de socialização e de treinamento realizados por instituições comprometidas com a formação de duplas eficientes entre pessoa cega e cão-guia.
Nesse contexto, destacamos a relevância da LEI Nº 11.126, de 27 de junho de 2005, e do Decreto Nº 5.904, de 21 de setembro de 2006, que assegura à pessoa com deficiência visual acompanhada de cão-guia o direito de ingressar e de permanecer com o animal em todos os meios de transporte e em estabelecimentos abertos ao público, de uso público e privados de uso coletivo, desde que observadas as condições impostas pela lei 11.126.
Embora a lei e o decreto sejam documentos claros e objetivos, ainda enfrentamos inúmeros casos de desconhecimento ou descumprimento da lei, resultando na violação de direitos básicos dos usuários de cães-guia.
Reconhecemos e apoiamos o avanço de projetos como o 10286/2018, apresentado pelo senhor Ciro Nogueira – PP/PI, senador Federal, que busca ampliar os direitos e a inclusão de usuários de outros tipos de cães de assistência, beneficiando pessoas com outras deficiências, síndromes e patologias. É nosso entendimento que a tecnologia assistiva, em suas diversas formas, deve ser garantida a todos, respeitando a diversidade humana e suas especificidades.
Destacamos, porém, que é imprescindível nossa participação, enquanto entidade representante de mais de 6,5 milhões de pessoas com cegueira ou baixa visão, na construção ou alteração de uma legislação que irá impactar diretamente nossos direitos.
Entendemos a importância de uma legislação que contempla a todas as especificidades de terem livre acesso utilizando o cão de assistência como uma tecnologia assistiva, mas não somos favoráveis a alteração da Lei 11126, que já é reconhecida há quase duas décadas para garantia do acesso das pessoas com deficiência visual acompanhadas os seus cães-guias.
Destacamos ainda alguns pontos que muito nos preocupam em relação a aprovação do projeto de lei 10.286/2018 sem as devidas alterações em pontos cruciais na clareza sobre os cães de assistência mais especificamente sobre o cão-guia.
A Lei Federal 11126 de 2005, juntamente com seu decreto regulamentador, 5904 de 2006, tem sido aplicada há quase duas décadas. Essa legislação assegura de maneira ampla o direito de mobilidade para pessoas com deficiência visual que são auxiliadas por cães-guia. No entanto, apesar de seu longo período de vigência, continuamos a enfrentar desafios significativos no que diz respeito ao seu cumprimento. Violações dos direitos dos usuários de cães-guia ainda são frequentes, com muitas instâncias de negação de acesso, exigindo frequentemente intervenção legal para assegurar o cumprimento dos direitos garantidos.
Como resultado de muita luta por parte das pessoas cegas usuárias de cães-guias, com o tempo, a Lei 11126/2005 e o decreto 5904/2006 ganharam maior reconhecimento e respeito, fortalecendo o direito fundamental de pessoas com deficiência visual de se deslocarem com segurança, junto com os seus cães-guia que realizam um serviço de tecnologia assistiva.
Entendemos que a lei 11.126 e o decreto 5904/2006 são poderosos instrumentos na garantia do direito das pessoas cegas e com baixa visão de ir e vir com segurança acompanhadas de seus cães-guias e quaisquer alterações nesses documentos imprescindivelmente devem ter a participação das pessoas cegas usuárias de cães-guias e de entidades de garantia e defesa de direitos das pessoas com deficiência visual.
A não participação de pessoas cegas em processos que desrespeitem a lei. 11.126/2005 ou o decreto 5905/2006 é uma afronta ao nosso lema “nada sobre nós sem nós”.
Além disso, muito nos preocupa as diversas lacunas existentes no Projeto de Lei 10286/2018 que tendem a complicar a situação, principalmente devido aos conteúdos dos artigos 3º e 5º. Estes artigos falham ao não estabelecer critérios claros e objetivos para a aplicação da lei, deixando espaço para regulamentação futura, e impõem restrições ao direito de estar acompanhado por um cão de assistência.
O artigo 5º do projeto de lei apresenta um ponto de grande preocupação, pois estabelece uma abertura ampla para recusas de acesso. Esse dispositivo condiciona a entrada de pessoas acompanhadas por cães de assistência às normas e regulamentos existentes, particularmente aqueles relacionados à proteção da saúde pública e segurança no transporte. No entanto, não especifica quais normas e regulamentos são esses. Com essa redação, pode-se entender que seria permitido negar acesso se, por exemplo, um regulamento interno de uma empresa proibir a entrada de cães.
É importante ressaltar que, em relação aos cães-guia, o Decreto 5904/2006 já assegura a proteção da saúde pública com parâmetros claros e objetivos, em seus artigos 1º, §§ 3º e 4º. Portanto, a inclusão desse novo dispositivo na Lei 11.126/2005 é desnecessária e criará barreiras injustificadas para o acesso de pessoas com deficiência visual usuárias de cães-guia.
Quando se trata de segurança nos transportes, é completamente infundado impor restrições ao acesso de cães-guia, pois, conforme estipulado pelos artigos 2º, VIII, e 3º, II, do Decreto 5904/2006, esses animais são naturalmente não agressivos e estão adequadamente vacinados.
Fica evidente o desconhecimento sobre cães-guia no parágrafo único do artigo 5º, ao permitir que regulamentos futuros possam negar o embarque de cães de assistência com base em critérios como agressividade, sinais de doença, falta de higiene ou tamanho incompatível com as normas de segurança do transporte, sem definir claramente esses critérios.
A recusa de um cão-guia com base em seu tamanho é particularmente ilógica, pois não existe um padrão de tamanho para esses animais. Os cães-guia podem variar em tamanho, e essa escolha é feita com base no perfil técnico do animal e nas necessidades específicas de seu usuário, não sendo uma preferência pessoal do indivíduo cego.
Outro fator inaceitável é a possibilidade de negação de acesso a aeronaves por motivos subjetivos como agressividade ou falta de higiene do cão, situações que poderiam ser contestadas no momento do embarque pelo usuário do cão-guia.
Quem seria o profissional capaz de identificar se um cão apresenta ou não agressividade? E esses profissionais estariam disponíveis em todos os aeroportos, a qualquer hora e em todos os voos? Essa possibilidade chega a ser um desrespeito ao trabalho sério que as escolas e institutos que entregam cães-guia têm realizado em nosso país. Essas instituições realizam uma análise criteriosa sobre o comportamento dos cães entregues.
A documentação que garante validade à saúde e à condição de trabalho dos cães-guias é a carteira de identificação emitida pelas escolas que socializam, treinam e formam a dupla composta por pessoa cega e cão-guia. A garantia de entrada e permanência da pessoa cega com seu cão-guia é assegurada pela Lei 11.126/2005 e pelo decreto 5904/2006.
Apoiamos veementemente que outras pessoas que necessitem de cães de assistência também tenham seus direitos garantidos e respeitados e que disponham de legislações e decretos específicos que assegurem essas garantias.
No entanto, é fundamental que nossas vozes sejam ouvidas e consideradas, especialmente quando se trata de direitos já conquistados. Qualquer mudança na legislação que assegura o acesso de pessoas cegas com seus cães-guias seria, em nossa visão, uma alteração indesejada de nossa história. Uma história que foi construída com muitas barreiras e resistências e que encontrou na Lei 11.126/2005 e no Decreto 5904/2006 pilares fundamentais.
Solicitamos, portanto, que para as pessoas cegas e seus cães-guias, a Lei 11.126/2005 e o Decreto 5904/2006 continuem sendo os instrumentos responsáveis por garantir nossos direitos.
Ressaltamos, mais uma vez, a importância de nosso lema ‘Nada sobre nós sem nós’. Mais do que ser respeitado, ele deve ser efetivamente posto em prática, assegurando nossos direitos e garantindo que nossa história de luta em prol das pessoas com deficiência visual seja devidamente reconhecida e valorizada.
É importante lembrar que a Lei 11.126/2005 e o Decreto 5904/2006 são partes da construção da história do movimento das pessoas cegas e com baixa visão e, como tal, devem ser preservados e valorizados.
Diretoria da Organização Nacional de Cegos do Brasil – ONCB
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