Mal retornou à Casa Branca e o presidente autoproclamado mais “pró-familia” e “pró-vida” da história do Estados Unidos já mostrou a que veio. A julgar pelos decretos e ordens executivas emitidos nos últimos dias, os direitos reprodutivos das mulheres e LGBTQI+ devem ser alvo de uma ofensiva com consequências que ultrapassam as fronteiras do país.
As medidas incluem desde restringir ainda mais o acesso ao aborto; e potencialmente atacar a contracepção e até mesmo tratamentos de fertilidade; a cortar o apoio federal para transições de gênero para adolescente, passando por restaurar a participação do país em dois pactos internacionais antiaborto.
O congelamento de verbas para programas federais deve comprometer políticas de prevenção da violência de gênero e assistência às vítimas e resultar num aumento da vulnerabilidade de pessoas que já enfrentam barreiras significativas para sair dessa condição.
A seguir, apresentamos as principais políticas implementadas pelo novo governo Trump, na sua cruzada anti-aborto e de ataques aos programas de enfrentamento à violência de gênero e aos direitos reprodutivos de mulheres e LGBTQI+.
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Fim das políticas de proteção de pessoas trans
Na terça-feira (21), Trump assinou uma ordem executiva cortando o apoio federal para cuidados médicos em transições de gênero de jovens com menos de 19 anos. A medida determina que programas de seguro de saúde administrados pelo governo federal, como o Tricare; para famílias de militares; e o Medicaid, excluam a cobertura para o fornecimento de bloqueadores da puberdade, terapia hormonal e cirurgias de afirmação de gênero.
“É política dos Estados Unidos não financiar, patrocinar, promover, auxiliar ou apoiar a chamada ‘transição’ de uma criança de um sexo para outro, e aplicará rigorosamente todas as leis que proíbam ou limitem esses procedimentos destrutivos e que alteram vidas”, diz o texto.
Também incentiva o Congresso a adotar uma lei que permita que aqueles que recebem cuidados de afirmação de gênero; ou seus pais; se arrependam e processem os provedores. Além de orientar o Departamento de Justiça a priorizar a investigação de estados que supostamente “facilitam a retirada da custódia dos pais” que se opõem aos tratamentos para seus filhos; e protegem médicos que os fornecem a pacientes que viajam de estados onde é proibido para menores. Em outras palavras, estados que favorecem o direito das crianças e adolescentes ao acesso a tais cuidados.
Na prática isso significa forçar adolescentes a passar pela puberdade completa com um gênero que não é deles, dificultando-lhes, inclusive, a própria transição para a vida adulta. As consequências para a saúde mental desse jovens podem ser devastadoras. Segundo relatos de organizações de defesa de pessoas trans, desde que a ordem executiva foi anunciada, ligações de crianças e pais de crianças trans, assustados com seu efeitos estão chegando em massa para todas as organizações e linhas diretas.
A própria linguagem utilizada pelo governo, com palavras como “mutilação” e “esterilização” – em sua plataforma Truth Social, Trump chamou os cuidados de afirmação de gênero de “procedimentos médicos bárbaros” – e rotulando a orientação da Associação Profissional Mundial para Saúde como “ciência lixo”, são uma forma de desqualificar a assistência a pessoas trans e contradiz totalmente o que é recomendado para os cuidados de afirmação de gênero nos Estados Unidos e no mundo.
Mas não para por aí, em outra ordem executiva, Trump pede que o governo federal defina sexo apenas como masculino e feminino; desconhecendo pessoas transgênero, não binárias, intersexuais e/ou a ideia de que gênero pode ser fluido; e que isso seja refletido em documentos oficiais e políticas de governo. Isso já resultou no Departamento de Estado interrompendo a emissão de passaportes com um marcador de gênero “X”, forçando pessoas transgênero a solicitar documentos de viagem com marcadores que não correspondem às suas identidades.
A ordem contém detalhes específicos sobre como deve ser aplicada em prisões federais, que abrigam quase 2.300 presos transgênero — cerca de 1,5% da população total. Ela determina que mulheres trans (mais de 1.500) sejam alojadas em prisões masculinas e que os cuidados médicos de afirmação de gênero sejam suspensos.
A Casa Branca também instruiu o secretário de Defesa, Pete Hegseth, a revisar a política do Pentágono sobre soldados trans, preparando o terreno para uma futura expulsão/proibição destes/as ao serviço militar. A ordem alega que o serviço prestado por pessoas que se identificam com um gênero diferente do biológico “entra em conflito com o comprometimento de um soldado com um estilo de vida honrado, verdadeiro e disciplinado, mesmo na vida pessoal” e é prejudicial à prontidão militar.
O mais provável é que o tema vá parar nos tribunais. Já o resultado no âmbito jurídico é incerto, haja visto a atual composição conservadora da Suprema Corte.
Cruzada anti-aborto
No mesmo dia que assumiu o mandato, Trump mandou tirar do ar o site Reproductiverights.gov; uma iniciativa de saúde pública online que ajudava pacientes a encontrar informações sobre saúde reprodutiva, acesso a cuidados de aborto e direitos legais; e revogou duas ordens executivas que instruíam o Departamento de Saúde a identificar ações para proteger e expandir o acesso ao planejamento familiar e atendimento ao aborto; como a ampliação do acesso a medicamentos anticoncepcionais, pílulas do dia seguinte e abortivos e o uso de recursos do Medicaid para financiar viagens de mulheres para estados onde o aborto é permitido; cujas principais beneficiárias eram mulheres pobres, especialmente negras, jovens e imigrantes, que não tem cobertura de seguro.
No decreto que reconhece apenas os gêneros feminino e masculino, intitulado “Defendendo as mulheres do extremismo da ideologia de gênero e restaurando a verdade biológica ao governo federal”, Trump incorporou discretamente princípios da personalidade fetal, que dota embriões ou fetos com direitos e proteções legais desde a concepção.
O decreto não estabelece concretamente novas proteções ou status legal para embriões e fetos, mas defensores da personalidade fetal devem se apoiar nele se realmente apresentarem um caso à Suprema Corte, como planejam, pressionando os juízes a declararem que a 14ª emenda; que determina que “nenhuma pessoa pode ter a vida ou a liberdade negadas sem o devido processo”; se aplica desde o momento da concepção. Isso poderia não só tornar o aborto ilegal em todo o país e equipará-lo ao crime de assassinato, como comprometer técnicas de reprodução assistida para quem busca tratamento de fertilidade.
Trump também concedeu indulto a quase duas dúzias de ativistas antiaborto, condenados por violar a Lei de Liberdade de Acesso a Entradas de Clínicas (Lei FACE), incluindo uma mulher que roubou fetos e outros condenados por abordar pacientes, bloquear fisicamente o acesso às clínicas e ferir funcionários. Em consonância, o chefe de gabinete do Departamento de Justiça, Chad Mizelle, anunciou que processos e ações civis sob a Lei FACE só serão permitidos em “circunstâncias extraordinárias”, rejeitando de imediato três casos de ativistas antiaborto que bloquearam o acesso a clínicas na Pensilvânia, Ohio e Tennessee.
Mas, uma das principais medidas na cruzada anti-aborto de Trump na semana que passou foi o restabelecimento da Política da Cidade do México – ou “regra da mordaça global”, como é conhecida. Trata-se de uma medida da era Reagan que proíbe organizações não governamentais estrangeiras de receber financiamento federal dos EUA se promoverem ou oferecerem abortos.
No memorando publicado na sexta-feira (24) a Política da Cidade do México foi justificada pela Casa Branca “para garantir que o dinheiro dos contribuintes americanos não financie organizações ou programas que apoiem ou participem da gestão de um programa de aborto coercitivo ou esterilização involuntária“.
Vale lembrar que devido a impedimentos legais, os Estados Unidos não financiam serviços de aborto no exterior. A Política da Cidade do México eleva essa restrição, pois proíbe que qualquer organização de saúde que realize, promova ou simplesmente defenda a liberalização do aborto, receba dinheiro dos EUA, independentemente da fonte de recursos que utilize para isso, já que um único dólar recebido do governo americano afetará seu orçamento operacional inteiro, de todas as fontes, em termos de capacidade de mencionar o aborto de forma proativa, inclusive em países onde a prática não é criminalizada, sob risco de interromper outros programas de saúde não relacionados.
Especialistas dizem que a política deve afetar milhões mulheres e meninas em todo o mundo. O país é de longe o maior financiador de organizações não governamentais de saúde e suas regras acabam definindo as agendas destas instituições. Em última instância, significará o comprometimento de programas de planejamento familiar e saúde reprodutiva, levando ao aumento de gravidezes indesejadas e abortos inseguros, contrariando o impacto pretendido.
Embora as ONGs dos EUA não estejam diretamente sujeitas à Política da Cidade do México, elas também são afetadas, pois devem concordar em garantir que não forneçam financiamento a nenhuma sub-recebedora de ONG estrangeira, a menos que essas sub-recebedoras tenham primeiro certificado a adesão à política.
Paralelamente à emissão da “ordem de silêncio”, o Secretário de Estado, Marco Rubio anunciou que os Estados Unidos estavam voltando a aderir à Declaração de Consenso de Genebra, aliança antiaborto patrocinada por países ultraconservadores que visa limitar o acesso ao aborto para milhões de mulheres, meninas e pessoas que gestam ao redor do mundo.
A Declaração desconhece o aborto como um direito e ainda parte de um conceito de família baseado em casais heterossexuais. Ela não tem caráter vinculativo, mas é um reforço aos movimentos de extrema direita que atuam para restringir o acesso ao aborto em seus respectivos países e pressionam seus governos para a adoção de posições conservadoras em organismos internacionais.
Não por acaso, no mesmo dia que o anúncio foi feito, o vice-presidente JD Vance compareceu pessoalmente e discursou na Marcha pela Vida, tradicional manifestação anual antiaborto, em sua primeira aparição pública desde que foi empossado, reafirmando o alinhamento do novo governo com os objetivos do movimento: “Esta administração apoia vocês, nós apoiamos vocês”, disse. Trump também discursou na Marcha, mas por meio de um vídeo pré-gravado no qual saudou o movimento.
Ataque aos programas de combate à violência de gênero
Em outro memorando, enviado a agências federais dos EUA na noite de segunda-feira (20), Trump ordenou o congelamento temporário do financiamento de programas em todo o governo, causando confusão generalizada entre autoridades governamentais e organizações que dependem de apoio federal, incluindo estados, escolas, hospitais e outras organizações sem fins lucrativos.
A ordem, temporariamente bloqueada por um juiz federal quando estava prestes a entrar em vigor, foi distribuída junto com uma planilha de cerca de 2.600 programas de diferentes tipos identificados pelo Escritório de Gestão e Orçamento, para revisão. O objetivo seria garantir que tais programas, não promovam “a equidade marxista” e “o transgenerismo”. As agências foram solicitadas a responder perguntas sobre cada linha orçamentária, incluindo “Este programa promove a ideologia de gênero?”
Entre os programas afetados estão vários voltados à prevenção e assistência à vítimas de violência como o Programa de Práticas restaurativas para lidar com violência doméstica, violência íntima, agressão sexual e perseguição (US$ 30 milhões); Programa de assistência para violência doméstica rural (US$ 36 milhões); Prevenção do tráfico de meninas (US$ 5 milhões); Programa de Serviços Específicos LGBT da OVW (US$ 1 milhão); Projetos Especiais do Escritório sobre Violência Contra as Mulheres (US$ 3 milhões); Iniciativa Nacional de Kits para Agressão Sexual (US$ 45 milhões); entre outros.
O impacto do congelamento desses programas sobre as vítimas de violência de gênero deve ser enorme. A cada ano, nos Estados Unidos, cerca de 12 milhões de mulheres se tornam vítimas de violência doméstica, e mais mulheres perdem suas vidas por violência de parceiros íntimos do que por qualquer outro meio. 55% das mulheres assassinadas são mortas por um parceiros íntimos, sendo que entre 2003 e 2017 quase um milhão de mulheres foram baleadas por um parceiro íntimo e sobreviveram.
As LGBTQI+ são significativamente mais propensas a sofrer abuso do que suas contrapartes heterossexuais. Mais de 40% das mulheres lésbicas e mais de 60% das mulheres bissexuais sofreram estupro, violência física e/ou perseguição. Para os homens, 26% dos gays e pouco mais de 37% dos bissexuais sofrem abuso e embora dados sobre pessoas transgênero sejam difíceis de encontrar, especialistas acreditam que as estatísticas para esse grupo podem ser ainda maiores.
Por outro lado, se bem a violência e feminicídios ocorrem com mulheres de todas as idades, entre todas as raças/etnias e independentemente da condição financeira desta, as mulheres jovens, de minorias raciais/étnicas e pobres, são desproporcionalmente afetadas e por isso mesmo serão as mais impactadas pela interrupção destes programas.
Conclusão
Resumindo, o retorno do presidente Trump à Casa Branca marca o início de uma era de retrocessos significativos nos direitos reprodutivos e nas políticas de proteção a grupos vulneráveis, como mulheres e a comunidade LGBTQI+. As ordens executivas e decretos emitidos refletem uma nítida intenção de restringir o acesso a cuidados de saúde essenciais, promover uma agenda antiaborto e deslegitimar a identidade de gênero. Essas medidas não apenas afetam diretamente a vida de milhões de pessoas nos Estados Unidos, mas também têm repercussões globais, comprometendo programas internacionais de saúde e assistência. A crescente vulnerabilidade de grupos já marginalizados, como as mulheres e as pessoas trans, ressalta a urgência de uma resposta coletiva e contundente para enfrentar essas ameaças e garantir que os direitos humanos destes setores sejam respeitados e protegidos. O futuro dessas políticas e seu impacto nas vidas de tantas pessoas dependerão da capacidade de mobilização da classe trabalhadora e seus aliados.