SoberanIA do Piauí, para o Brasil – para o mundo
por Isabela Rocha
A SoberanIA, ferramenta anunciada pelo governo do Piauí, será a primeira plataforma de Inteligência Artificial desenvolvida com uma base de dados 100% em português e sob total controle estatal, sem depender da Big Tech. Projetada para atuar como um modelo de linguagem avançado, a SoberanIA funcionará em um supercomputador do governo estadual, oferecendo suporte à administração pública na automação de processos, na análise de dados estratégicos e na formulação de políticas públicas mais eficazes. Como sugerido pelo nome, a SoberanIA tem como centro a pauta da soberania estatal – neste caso, através da garantia de que os dados sensíveis e as decisões baseadas em AI permaneçam sob controle nacional.
O estado do Piauí tem se consolidado, desde o ano passado, como um dos pioneiros no desenvolvimento de ferramentas de IA – particularmente no que diz respeito ao uso de IAs voltadas para a gestão pública. Em setembro de 2024, tive a oportunidade de capacitar dezenas de servidores do Piauí através da formação promovida em parceria com Programa Fortalecer, da organização Motriz: Inteligência Artificial na Máquina Pública, que proporcionou aos gestores públicos um entendimento aprofundado sobre a IA e seu potencial no contexto da Máquina Pública. E, entre a agenda do desenvolvimento de uma IA estatal discutimos sobre o sonho de uma IA nacional, e, sim, soberana.
Mas o que isso significa, na prática?
Uma IA soberana precisa ser construída tendo o ethos da população em sua centralidade – ou, em termos técnicos, em seu treinamento. Por isso, a construção da base de dados da SoberanIA em português é tão importante, uma vez que garante que a IA compreenda e reproduza não apenas a estrutura linguística do idioma, mas também as nuances culturais, expressões regionais e especificidades do contexto social e administrativo do Brasil. Espera-se, assim, que a SoberanIA seja capaz de oferecer respostas contextualizadas às demandas do setor público brasileiro, evitando os vieses encontrados em modelos de IA desenvolvidos em inglês.
Ressalto que a SoberanIA está sendo desenvolvida para o setor público piauiense – visando a otimização dos processos burocráticos através do que foi denominado de governo conversacional, um modelo de administração pública no qual cidadãos podem interagir diretamente com a IA para obter informações, acessar serviços e realizar solicitações por meio de interfaces automatizadas, como chats e assistentes virtuais. No entanto, o que hoje é a SoberanIA pode ser muito mais do que um chatbot visando a melhoria dos processos burocráticos, e pavimenta o caminho para a realização do sonho de uma Inteligência Artificial Brasileira e soberana, que sirva não apenas à burocracia estatal, mas toda a população brasileira em suas diversas demandas.
Outros países já estão desafiando a hegemonia tecnológica da Big Tech, como a China, que lançou recentemente a DeepSeek, um modelo de IA de código aberto muito mais barato que o ChatGPT americano. Recentemente, o Ministério das Relações Internacionais da República Popular da China lançou o Plano de Ação para o Desenvolvimento da Capacidade em IA para o Bem e para Todos, uma iniciativa que visa reduzir a lacuna digital e garantir que os países do Sul Global possam se beneficiar equitativamente dos avanços em inteligência artificial, propondo o fortalecimento da infraestrutura digital e de IA, o desenvolvimento de aplicações industriais estratégicas e a promoção de políticas de segurança e governança para a IA em nível global, destacando a importância da diversidade de dados e da proteção de direitos digitais, promovendo o uso de IA inclusiva e, principalmente, culturalmente sensível.
O plano Chinês para a IA está em concordância com a política de código aberto da DeepSeek, uma vez que permite que os algoritmos de aprendizado de máquina sejam treinados em bases de dados completamente brasileiras. Ao utilizar modelos já disponíveis e de código aberto, desenvolvedores brasileiros podem se apropriar de arquiteturas avançadas de Inteligência Artificial, como as da DeepSeek, sem precisar depender de empresas estrangeiras para acessar ou modificar seus sistemas. Isso pois o código aberto permite que os algoritmos sejam auditáveis e transparentes, além de que a possibilidade de treinar a IA em bases de dados inteiramente brasileiras assegura que o modelo seja desenvolvido para compreender o idioma, a cultura e as necessidades específicas da administração pública e da população local. Assim, o Estado do Piauí deu o pontapé inicial ao garantir que a SoberanIA seja desenvolvida inteiramente dentro de uma infraestrutura pública e com um treinamento específico para o contexto nacional, estabelecendo um precedente para que outras iniciativas de IA soberana sejam implementadas no Brasil e provando que o desenvolvimento de uma IA independente da influência predatória da Big Tech é possível.
Outro ponto fundamental, para além do treinamento em português, é o de que a SoberanIA opera infraestrutura própria, dentro do território nacional, o que reduz significativamente a vulnerabilidade a ataques cibernéticos externos e limita a possibilidade de ingerência estrangeira sobre sistemas críticos do governo – fortalecendo a soberania digital do Brasil e estabelecendo um marco para que o país expanda sua capacidade tecnológica.
A ampliação, no entanto, de infraestruturas tecnológicas soberanas, como data centers, redes de comunicação independentes, plataformas de IA desenvolvidas localmente, sistemas de armazenamento e processamento de dados próprios (infraestrutura dura), e protocolos de cibersegurança nacionais, depende de cooperação tanto em níveis federais quanto internacionais. No entanto, o reordenamento do arranjo político internacional no Mundo Multipolar, onde o poder global não está mais concentrado exclusivamente no Leste Ocidental, implica em oportunidade para que os países do Sul Global passem a estabelecer suas próprias infraestruturas tecnológicas alinhadas aos seus interesses nacionais e livres da hegemonia consolidada com o Meta-Trumpismo, ou seja, a aliança entre a Casa Branca e a Big Tech. O plano chinês para a Capacitação em Inteligência Artificial para o Bem e para Todos está alinhado com essa visão, pois reconhece que o desenvolvimento de IA não deve ser um privilégio restrito a poucas nações, e, propõe a criação de uma rede global de cooperação, onde países possam compartilhar conhecimento, infraestrutura e práticas regulatórias para garantir um avanço tecnológico que beneficie a todos.
Se bem-sucedida, a experiência da SoberanIA poderá servir como projeto-piloto para um modelo nacional de inteligência artificial soberana, incentivando a replicação dessa iniciativa em outras unidades federativas e até mesmo nos âmbitos federais e internacionais. Isso, no entanto, exige cooperação estrutural, tanto interna quanto externa, para garantir que a tecnologia não apenas seja desenvolvida, mas também sustentada por uma infraestrutura soberana e segura, capaz de operar independentemente da Big Tech e de interesses externos.
Diante desse cenário, a presidência brasileira dos BRICS em 2025 abre um espaço estratégico para a promoção da soberania digital no Sul Global. Por intermédio da ampliação das parcerias no contexto dos BRICS+, através, por exemplo, do NDB, a construção de infraestrutura tecnológica dura (hardware) se torna possível e viável, especialmente considerando o mercado crescente dos BRICS+, que já representa uma fatia significativa da economia global. Com a ampliação da cooperação em setores estratégicos, como produção de semicondutores, redes de comunicação seguras e supercomputação, os países do bloco podem reduzir sua dependência de insumos tecnológicos ocidentais e fortalecer cadeias de fornecimento resilientes. Uma vez que o mercado dos BRICS+ oferece um ambiente propício para a adoção de tecnologias desenvolvidas dentro do próprio bloco, permitindo que soluções como a SoberanIA sejam integradas a sistemas governamentais e corporativos nos países membros.
A presidência brasileira dos BRICS+ pode articular não apenas um movimento político em prol da soberania digital, mas também consolidar um novo eixo econômico e tecnológico que promova uma infraestrutura digital multipolar capaz de competir com a Big Tech e reduzir a hegemonia tecnológica do Norte Ocidental. A SoberanIA nasce como um símbolo dessa virada, um projeto que não se limita ao Piauí, nem ao Brasil, mas que aponta para um futuro onde a tecnologia deixa de ser uma ferramenta de dominação e passa a ser um motor de desenvolvimento soberano e inclusivo. Ao demonstrar que é possível construir inteligência artificial livre de monopólios estrangeiros, enraizada em nossa língua, cultura e necessidades nacionais, a SoberanIA abre caminho para que outros países do BRICS+ trilhem o mesmo percurso, fortalecendo suas infraestruturas digitais e rompendo com a dependência imposta pelo Vale do Silício.
Este é o momento de ousar, construir e liderar. Se a presidência brasileira do BRICS+ for bem-sucedida em seus objetivos, que inclui a promoção da governança inclusiva e responsável da Inteligência Artificial para o desenvolvimento, nosso país poderá não apenas consolidar sua soberania digital, mas também mudar a arquitetura do poder tecnológico global, provando que um futuro multipolar, ético e verdadeiramente democrático não é apenas possível – é inevitável.
Isabela Rocha é mestre e doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL UnB). Atualmente coordena o Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (GEPSI IREL UnB) e representa o Fórum para Tecnologia Estratégica dos BRICS+, em apoio à presidência brasileira do bloco, visando o desenvolvimento de infraestrutura tecnológica integra e soberana na União.
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