Na Argentina, coletivo LGBTQ+ marcha contra os ataques de Milei à liberdade sexual
por Maíra Vasconcelos
Especial para Jornal GGN
As lutas sociais na Argentina acontecem nas ruas, com mobilizações, protestos e marchas, muitas vezes multitudinárias. E se nem sempre são massivas, fato é que são constantes. Foi assim que a legalização da prática do aborto passou a ser um direito, desde dezembro de 2020. Foi assim que, em 2012, foi aprovada a lei de identidade de gênero, que permite que pessoas trans e travestis mudem seus nomes sem recorrer à justiça. No último sábado, 1, a comunidade LGBTQ+ foi a responsável por levar centenas às ruas de Buenos Aires, pela defesa dos direitos já conquistados, contra os ataques do governo à liberdade sexual, e em resposta às palavras discriminatórias proferidas por Javier Milei, em Davos, durante o Fórum Econômico. O presidente chegou a associar a adoção por parte de casais homossexuais à pedofilia, além de questionar a figura jurídica do feminicidio.
A “Marcha Federal LGBTIQ+ Antifascista e Antirracista” teve réplica em 130 localidades do país e em cidades de mais de 15 países (Berlim, Madrid, Amsterdam, Nova York, Roma, Lisboa, Rio de Janeiro, Cidade do México, entre outras). A concentração, em Buenos Aires, aconteceu nas imediações do Congresso, de onde os manifestantes marcharam, desde às 16 horas, até a Praça de Maio. O contexto atual de avanço das políticas do governo anti-direitos, anti-feministas e contras as questões de gênero, também foi motivo para que a mobilização deste sábado expressasse a necessidade de defender e garantir a continuidade dos direitos já adquiridos.
“Marchamos por nosso orgulho, nossa dignidade e nossos direitos alcançados. Ninguém nos deu nada de bandeja. Nesse caminho muitas mulheres foram mortas pelas mãos da polícia e do Estado que nos reprimiu. Perdi, através dos anos, mil amigas. Assim não podemos viver nunca mais. Nós somos as velhinhas que estamos lutando pelos direitos já conquistados. O único que esperamos é que os jovens, toda a juventude venha apoiar isso. Nós abrimos o caminho, agora é hora de mantê-lo”, disse a trabalhadora sexual trans, Marcela Victoria Arce, 56.
A Casa Rosada pretende apresentar um projeto que se chama “Igualdade ante a lei”, durante as sessões ordinárias do Congresso, em 1 de março. O projeto propõe derrubar duas leis fundamentais que protegem as questões de gênero no país. A chamada “Lei Micaela”, que estabelece capacitação obrigatória em questão de gênero para funcionários públicos, e a chamada “Lei de Paridade de Gênero”, que garante a igualdade de representação entre homens e mulheres nos cargos eletivos.
Em meio à concentração, antes da saída da marcha, Huka, 30, desenhista de indumentária, que se reconhece queer, contou que mora no Conurbano (Área Metropolitana de Buenos Aires, AMBA) e percebe que na Capital Federal vive-se de outra maneira as questões de gênero.
“Foi duro quando me assumi. Venho do Conurbano, não é Capital, e no Conurbano não está tudo tão aberto como se vê aqui. Foi violento pra mim, e sem meus amigues, sem as pessoas da comunidade, eu não estaria aqui. Tenho a cara marcada, me bateram quando era criança, por ser “marika”. Por isso, queremos reconhecer-nos e estar aqui sem dar nenhum passo atrás”.
Huka quis aproveitar a oportunidade para deixar um recado. “Como pessoa queer do Conurbano quero deixar bem claro que não temos medo e não vamos dar nenhum passo atrás. Estaremos em contra, sempre”.
Em seu discurso em Davos, Milei chegou a sugerir que a tipificação jurídica do feminicídio é um privilégio. Quer dizer, as mulheres seriam privilegiadas perante a lei, ainda que as “privilegiadas”, nesse caso, resultem mortas.
“Se alguém mata uma mulher, chama-se feminicídio, com uma pena mais elevada do que se alguém mata um homem, como se a vida da mulher valesse mais. O feminismo tem como objetivo colocar metade da população contra a outra”, disse Milei. Mas lamentou que de acordo com esse mesmo feminismo, ‘não se queixam de que a maioria dos prisioneiros são homens, que a maioria dos canalizadores são homens, e muito menos dos que morrem nas guerras”.
Ainda em seu discurso em Davos, no último 23 de janeiro, Milei disse que “o feminismo, a igualdade, a ideologia de gênero, as mudanças climáticas, o aborto e a imigração são cabeças do mesmo monstro, cujo objetivo é justificar o avanço do Estado”.
O “monstro” dito pelo presidente em seu discurso é a chamada “Culture Woke”. “É nosso dever moral e nossa responsabilidade histórica desmantelar o edifício ideológico do “Wokismo” doentio”. O termo é utilizado pela extrema-direita estadunidense para se referir a propostas progressistas que procuram expandir direitos e promover lutas sociais coletivas.
Sasha Solano, ativista e militante pelos direitos humanos da comunidade trans e travesti, 59,era uma das que estavam à frente, puxando a marcha, e segurava uma enorme faixa que dizia “antifascista e antirracista”. “A maioria de nós somos companheiras sobreviventes de todas as lutas que já atravessamos. Temos vivido todo tipo de violências. Nós queremos viver em liberdade e com direito. Sem direitos, não há vida. A cada 30 horas matam uma mulher na Argentina. Então, do que estamos falando?”.
Para Nereida, 29, artista artesã, membro do coletivo “Coluna Mostri”, nascido com a assunção do governo Milei e contra suas políticas anti-gênero, a marcha funciona como uma espécie de alerta contra o intolerável.
“Esperamos que a sociedade perceba que já não dá mais. Estamos muito felizes com a repercussão dessa mobilização, que teve ecos em todo o país e também internacionalmente. Em resposta a Milei, em particular, por suas ações fascistas. Mas também ao fascismo do mundo inteiro. Estamos em um momento da ordem mundial em que já não podemos continuar habilitando esses discursos e essas políticas”.
Diante de toda a violência e discriminação sexuais que precisam continuar sendo parte do passado e não retornarem no presente, a trabalhadora sexual trans, Marcela Victoria Arce, contou brevemente uma vivência.
“Quando estávamos na casa de uma amiga que era cabeleireira, estávamos juntas comendo, e a polícia achou que poderia arrombar, invadir a casa. Por que quiseram sem que nada desse uma ordem nem nada. Isso foi exatamente em 1988, chutaram a porta e queriam nos levar presas. Não levaram, mas nos mataram a golpe, sem nenhum porquê. Esses eram os absurdos cometidos nos anos 80 e 90 neste país. Esses são os tipos de episódios aos quais não queremos voltar nunca mais”.
É por essa razão que se realizam marchas e protestos. Também para que o passado não avance sobre o presente. Nunca mais, disseram as manifestantes, neste 1 de fevereiro, na Argentina, e em outras partes do mundo.
Maíra Vasconcelos é jornalista e escritora, de Belo Horizonte, e mora em Buenos Aires. Escreve sobre política e economia, principalmente sobre a Argentina, no Jornal GGN, desde 2014. Cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina (Paraguai, Chile, Venezuela, Uruguai). Escreve crônicas para o GGN, desde 2014. Tem publicado um livro de poemas, “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) e também a plaquete, “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Oficios Terrestres, 2021).
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