Relator das ações relacionadas às emendas parlamentares, o ministro Flávio ­Dino, do Supremo Tribunal Federal, parece ter abreviado o período de descanso no recesso do Judiciário. Engajado na missão de investigar o destino de quase 50 bilhões de reais­ empenhados por deputados e senadores no ano passado, o magistrado decidiu passar um pente-fino também nos repasses a organizações do terceiro setor. Em 3 de janeiro, ele determinou a suspensão imediata dos recursos destinados a 13 ONGs que não cumpriam as regras de transparência acordadas com o Legislativo. A decisão teve como base um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) que analisou 33 entidades, incluindo fundações ligadas a universidades públicas.

Na terça-feira 28, Dino autorizou o pagamento das emendas destinadas a quatro fundações de apoio a pesquisas. Os repasses foram liberados após uma auditoria da CGU apontar que não havia irregularidades nas transferências. As liberações estão sendo feitas a conta-gotas, após uma minuciosa checagem de toda a documentação. No sábado 25, duas organizações receberam aval para acessar os recursos, assim como ocorreu com outra entidade em 14 de janeiro. Restam ainda seis que continuam impedidas de receber os valores porque seguem com pendências e não cumprem os requisitos de transparência exigidos pelo ministro.

Em relação às universidades e suas respectivas fundações, Dino deu prazo de 30 dias para que os governos federal e estaduais estabeleçam normas orientando as entidades sobre a prestação de contas no uso de emendas parlamentares e aplicação desses recursos. É praticamente unânime, entre as organizações da sociedade civil, o apoio à determinação do ministro em busca da transparência e rastreabilidade dos recursos repassados, como forma até de reforçar a credibilidade dessas ONGs.

Senado. Um dos arquitetos do “orçamento secreto”, Alcolumbre volta a presidir a Casa – Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado

“É importante reconhecer o trabalho realizado por essas organizações no Brasil, que, muitas vezes, desempenham atividades que o próprio Estado não cumpre em áreas como saúde, educação e assistência social. São entidades, na sua absoluta maioria, íntegras e que desempenham ­suas funções com muita responsabilidade. No entanto, o que temos visto na mídia é que algumas delas foram instrumentalizadas para processar desvios de recursos oriundos de emendas”, ressalta Guilherme France, gerente do Centro de Conhecimento Anticorrupção da Transparência Internacional Brasil. “Essa minoria que comete irregularidades acaba prejudicando a imagem e a percepção pública em relação ao conjunto muito mais amplo de organizações do terceiro setor que fazem trabalhos essenciais à sociedade.”

Sílvio Santana, do Conselho de Fomento e Cooperação da Secretaria Geral da Presidência, é um dos líderes de um movimento que defende um novo marco regulatório da sociedade civil. Ele apoia a decisão de Dino, admite a existência de irregularidades em uma parcela das organizações sociais, mas critica o nível de exigência para algumas entidades, que nem sempre dispõem de estrutura para cumpri-la. “Somos todos favoráveis à transparência e à rastreabilidade dos recursos, tanto que fizemos um esforço grande, juntamente com centenas de organizações, para construir uma lei que garantisse um relacionamento republicano entre as organizações da sociedade civil e os governos, que resultou na Lei 13.019. Só que a grande parte das transferências não é feita dentro dessa lei, o repasse é via convênio e envolve uma grande massa de recursos. Quando o ministro toma essa decisão, entra tudo no mesmo bolo. Todas as entidades sem fins lucrativos que receberam recursos de emendas tiveram seus contratos suspensos”, salienta. “É preciso, sim, um freio de arrumação, mas existem muitas entidades que são absolutamente idôneas, fazem um trabalho necessário para comunidades, e não podem ser apenadas pelas burocracias governamentais.”

Mobilização. Grupo propõe mudanças no regimento interno da Câmara Federal – Imagem: Redes Sociais/Pacto Pela Democracia

O caminho de bilhões de reais que saem via emendas parlamentares está no radar do STF desde 2022, quando a então ministra Rosa Weber decidiu pela inconstitucionalidade das chamadas “emendas do relator”, também conhecidas como “orçamento secreto”. Implementadas em 2020, elas davam ao relator do orçamento no Congresso o direito de apontar os parlamentares que iriam receber verbas, sem que eles fossem identificados e sem nenhum critério de transparência e rastreabilidade desses recursos. Para contornar a decisão do STF, o presidente da Câmara, Arthur Lira, turbinou o papel das comissões, permitindo a transferência de recursos aos redutos políticos dos parlamentares por meio das emendas de comissão, uma forma de o Legislativo continuar gerindo uma gorda fatia do orçamento da União.

Lira acaba de concluir o segundo mandato como presidente da Câmara, protagonizando o maior de todos os duelos com o Executivo na briga pelo controle do orçamento público. “Não fomos eleitos para sermos meros carimbadores”, disse o parlamentar ao ser reempossado ao cargo, em fevereiro de 2023, um claro recado ao presidente Lula, que acabara de assumir o terceiro mandato. Agora, ele passa o bastão a Hugo Motta, do Republicanos da Paraíba, que deve ser eleito o novo presidente da Casa neste sábado, 1º de fevereiro, com o apoio de Lira e também do PT. Ele terá entre os desafios manter o repasse de recursos via emendas. Na semana que antecedeu a eleição da nova diretoria da Câmara, Motta realizou um périplo pelos estados em busca de apoio. Reuniu-se com parlamentares e políticos de São Paulo, na segunda-feira 27, e, no dia seguinte, do Rio de Janeiro.

Assim como na Câmara, o Senado também deve escolher seu novo presidente neste sábado. O franco favorito é o senador Davi Alcolumbre, do União Brasil do Amapá. Ele retorna, na verdade, ao cargo que ocupava quando do início do orçamento secreto, em 2020, e é apontado como um dos principais arquitetos do esquema de emendas parlamentares, ao lado de Lira. Ocorre que nem Motta nem Alcolumbre vão encontrar terreno fácil para seguir com o sequestro do orçamento. Substituto de Weber no STF, Flávio Dino comprou a briga e passou a cobrar o rastreamento de todos os repasses via emendas de comissão. Em agosto do ano passado, o ministro chegou a suspender todas as transferências, que só puderam voltar a acontecer “mediante prévia e total transparência e rastreabilidade”.

Um levantamento da CGU indica que as emendas de comissão utilizam o mesmo modus operandi do “orçamento secreto”

O ministro considera o método das emendas de comissão “absolutamente incompatível com a Constituição, inclusive quanto à harmonia entre os Poderes”. Um levantamento feito pela CGU constatou que essas emendas de comissão utilizam o mesmo modus operandi do orçamento secreto, sem transparência no controle de gastos públicos. No fim de 2024, com base em uma notícia-crime da CGU, a Polícia Federal deflagou a Operação Overclean, na Bahia, que investiga o desvio de 1,4 bilhão de reais em contratos com o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, o Dnocs.

As investigações apontam, por exemplo, uma série de irregularidades em contratos firmados entre o Dnocs baiano e a empresa Allpha Pavimentações e Serviços de Construções Ltda., a partir de repasses de emendas parlamentares. A operação respingou no deputado Elmar Nascimento, do União Brasil, o que justifica o caso de isso parar no STF.

Os empresários Alex Rezende Parente e José Marcos de Moura, conhecido como “Rei do Lixo”, além de Lucas Lobão, superintendente do Dnocs na Bahia durante o governo de Jair Bolsonaro, são apontados como os líderes de um esquema criminoso que teria movimentado, só em 2024, em torno de 825 milhões de reais em contratos firmados com órgãos públicos. Durante as buscas, a PF localizou um documento de transação de um imóvel de uma empresa na qual Nascimento é um dos sócios.

STF. Gilmar Mendes reaviva o debate sobre semipresidencialismo, enquanto Flávio Dino cobra transparência das ONGs – Imagem: Roberto Jayme/TSE e Rosinei Coutinho/STF

Embora a Operação Overclean tenha vinculação com as emendas parlamentares, o ministro Kassio Nunes Marques foi o sorteado para relatar o caso no STF, o que levou a PF a pedir à Corte que reconsidere tal decisão e deixe o processo nas mãos de Dino, solicitação também feita pelo Ministério Público. O presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, encaminhou o pedido para análise da secretaria judiciária do tribunal e, na sequência, requisitou um parecer da Procuradoria-Geral da República. É provável que Dino acumule o caso, em situação semelhante àquela de Alexandre de Moraes, relator de todos as ações envolvendo o 8 de Janeiro e as fake news.

No fim do ano passado, o Pacto pela Democracia lançou a Agenda Câmara Aberta, um documento assinado por mais de 20 entidades da sociedade civil que defendem mudanças no regimento interno da Câmara dos Deputados. “O que a gente propõe é uma Câmara com mais participação da sociedade civil”, diz Arthur Mello, coordenador de ­advocacy da entidade. “Vemos nas investigações sobre as emendas parlamentares uma oportunidade de se rediscutir o que aconteceu com o orçamento brasileiro nos últimos tempos. Quando você tem um desequilíbrio dos Poderes, o Legislativo puxando a corda para o seu lado, sequestrando parte dos recursos a partir de medidas que não foram discutidas amplamente, o que tende a acontecer é essa corda ser puxada pelo outro lado, é as investigações acontecerem, é o Judiciário ir atrás do que está acontecendo. As investigações em curso são o resultado inevitável do mau uso do dinheiro público.”

A celeuma envolvendo as emendas parlamentares e o controle de boa parte do orçamento da União por um segmento do Congresso reacendeu o debate sobre o regime semipresidencialista. Um dos maiores entusiastas da proposta é o ministro Gilmar Mendes, do STF. Na quinta-feira 23, ao discursar para empresários durante um evento na Suíça, o magistrado classificou o quadro brasileiro como “um modelo esquisito, estrambótico”, uma vez que o parlamentar termina desempenhando um papel que é do Executivo, mas não arca com responsabilidades. “Não é chegada a hora de pensarmos em um semipresidencialismo?”, indagou o ministro, ignorando o fato de que a mudança daria ainda mais poder ao Congresso e poderia resultar em impasses políticos como o visto na França, onde o presidente Macron perdeu maioria parlamentar e não consegue manter de pé um governo.

“Da forma como foram projetadas, as emendas parlamentares forçam um semipresidencialismo de coalizão, porque o Legislativo passa a ditar o ritmo de execução orçamentária, ponto nevrálgico da implementação das políticas públicas, uma disfuncionalidade que está acontecendo neste momento e rebaixa o nosso presidencialismo para um semipresidencialismo informal”, avalia o cientista político Cláudio André de Souza, professor da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Em referendos realizados em 1963, no governo de João Goulart, e em 1993, o Brasil ratificou a preferência pelo presidencialismo como regime de governo. •

Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cabo de guerra’

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Last Update: 30/01/2025