Claudia Leitte criou um rebuliço, no fim do ano passado, após trocar em um show, num verso da música Caranguejo, uma referência a iemanjá, orixá da religião afro-brasileira, por Yeshua, alusão a Jesus Cristo. A canção foi lançada em 2004 quando a cantora fazia parte do grupo Babado Novo. A mudança na letra expõe o contrassenso da cantora com o movimento musical que a projetou, com raízes afro-baianas.
Leitte e Ivete Sangalo foram responsáveis por manter a chamada axé music respirando na primeira década de 2000. Foi a última fase de evidência nacional. Nos anos seguintes, o formato entrou em profunda decadência. A própria Ivete sentiu na pele, em 2024, a exaustão do gênero que fez dela uma estrela da música. A sua grandiosa turnê de 30 anos de carreira que passaria por palcos de ao menos 30 cidades brasileiras foi cancelada. A produção da cantora alegou inépcia da realizadora dos shows para o distrato, mas quem vive os bastidores do meio musical tinha a resposta pronta: dificuldade de venda de ingressos de uma artista associada a um movimento hoje incapaz de atrair público para uma turnê desse porte.
Com esses percalços, em 2025 a axé music chega aos 40 anos de existência. O movimento, que transformou o Carnaval em uma festa o ano inteiro por meio das micaretas, promete ser lembrado por alguns próceres durante a folia de Salvador, onde foi criado, mas tudo indica que não passará disso.
Duas músicas designam o início oficial da criação do gênero em 1985: Fricote, de Paulinho Camafeu e Luiz Caldas, lançada pelo último, e É d’Oxum, de Vevé Calazans e Gerônimo Santana, que apresentou a música, um hino informal de Salvador.
O movimento, no seu início, marcou uma geração com canções bem-acabadas, como Baianidade Nagô (Evandro Rodrigues) e Prefixo de Verão (Beto Silva), interpretadas pela Banda Mel, e O Canto da Cidade (Tote Gira e Daniela Mercury) e Swing da Cor (Luciano Gomes), também na voz da Rainha do Axé, Daniela Mercury.
A atual Ministra da Cultura, Margareth Menezes, também foi importante para o movimento ao associar o afro-pop da axé music com o samba-reggae, nascido nos blocos afro de Salvador. Entre as músicas que a cantora deu luz estão Faraó (Luciano Gomes) e Elegibô (Rey Zulu e Ythamar Tropicália). Ainda se destaca no movimento a proeminência dos tambores executados por grupos como Timbalada, liderado por Carlinhos Brown, e Olodum. Os toques no instrumento de percussão preenchidos de brasilidade foram os responsáveis por levar a axé music ao exterior.
Toda essa história de êxito sofreu, no entanto, esgotamento irreversível tempos depois. Antes mesmo da ascensão de Ivete Sangalo e Claudia Leitte, o surgimento de bandas como É o Tchan e Terra Samba, em meados dos anos 1990, com apresentação de dançarinas e letras de duplo sentido e repetitivas, expunha um mercado musical apelativo e, ao mesmo tempo, com bloqueio musical criativo. Um dos compositores mais respeitados da Bahia, Roberto Mendes, gravado principalmente por Maria Bethânia, teve duas músicas registradas por Daniela Mercury no seu disco de estreia, que leva o seu nome, de 1991: Ninguém Atura (com Paquito) e Doce Esperança (com J. Velloso). Ele não considera as duas canções relacionadas ao gênero. “Não tenho a cara do axé. Minha música é regional”, afirma. “Música no Brasil é refém do texto. A qualidade dos versos da axé music caiu muito.” Por outro lado, Roberto Mendes ressalta boas canções produzidas nesse universo. Dentre elas, Cometa Mambembe, de Carlos Pitta, compositor falecido no início deste ano, e Meia Lua Inteira (Carlinhos Brown), apresentada pelo grupo de axé ainda ativo Chiclete com Banana e regravada por Caetano Veloso no disco Estrangeiro (1989).
O ritmo que domina o Carnaval de Salvador atualmente é o pagode baiano
Marcia Castro fazia o percurso de bares em Salvador quando a axé music vivia seu auge, no início dos anos 1990. Como cantora em início de carreira, imaginava-se capaz de ocupar um espaço naquela efervescente indústria. Chegou a formar bandas voltadas ao gênero para se apresentar nas micaretas. “A axé music tinha embalagem estética, de mulheres mais brancas, dançarinas, que não se encaixava comigo.” Além disso, a cantora e compositora diz que empresários do movimento manipulavam a cadeia musical. “Tinha um grupo fechado que queria monopolizar o mercado. Isso fragilizou demais, impedindo que outros artistas surgissem”, diz. “A sua maior força, o tambor, foi se desconfigurando. Esse pulso forte, essa marcação, impossível de ficar parado, foi tirado isso. Como dar sustentabilidade a um movimento desses?”
Magoada por não conseguir inserir-se na indústria, Castro afastou-se da música baiana , posteriormente, mudou-se para São Paulo. Com seis álbuns lançados, somente nos dois últimos ela se reconecta com a cena que a formou na sua terra natal. Em 2021, a cantora lançou o disco de inéditas Axé, onde repassa o estilo do movimento dos anos 1990. No fim do ano passado, apresentou Roda de Samba Reggae – Ao Vivo, com clássicos do gênero. “A grande base do axé é o samba-reggae”, pontua.
A produção do que se conhece como axé music é bastante tímida hoje. Luciano Matos, pesquisador musical e autor do livro O Canto da Cidade: da Matriz Afro-Baiana à Axé Music de Daniela Mercury (Edições Sesc São Paulo), afirma que o gênero é uma sonoridade festiva urbana que tem feito falta. “O movimento foi se afastando das camadas populares, com os blocos crescendo muito, virando algo mais para turista, perdendo a relação com a população local”, avalia. A música popular de Salvador atualmente, afirma o estudioso, é o pagode baiano, que domina o Carnaval. “Teve erros empresariais. Eles foram muito ambiciosos e vorazes. A axé music deixou um legado, mas a um custo muito alto.” Segundo ele, empresários que eram donos de blocos acabaram controlando bandas, programação de rádio e a produção, aniquilando com a diversidade capaz de trazer novidades e criatividade ao movimento. Artistas consagrados da axé music têm, nos últimos tempos, tentado se recriar, de acordo com Matos. Mas ele vê esse grupo ainda muito preso ao passado.
Lazzo Matumbi, ligado ao movimento negro de Salvador, é autor de dois clássicos incluídos na discografia da axé music na sua primeira fase e conhecidos na voz de Margareth Menezes: Alegria da Cidade (com Jorge Portugal) e Me Abraça e Me Beija (com Gileno Félix). “A característica do movimento axé era tocar tudo que fosse dançante”, avalia. “Era uma música feita para o Carnaval. Isso me deixava triste porque tirava o foco da música feita para o teatro.” Para o cantor e compositor, “a repetição de muitos artistas, com os mesmos repertórios, desgastou”.
A axé music foi capaz de promover Carnaval fora de época, por vários anos seguidos, pelo Brasil afora. Muitas cidades adotaram suas músicas durante a folia, quando não contratavam bandas capazes de reproduzir em um trio elétrico o som do movimento, prejudicando muitas vezes a própria cultura local carnavalesca. A mesma intensidade avassaladora de ascensão foi também de queda e esgotamento da fórmula. Jamais se viu na história da música brasileira dos tempos recentes algo parecido. Tornou-se um exemplo dos malefícios do poder da indústria no segmento. •
Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Foi até o chão’