A epígrafe de A Ligação, da escritora alemã Katharina Volckmer, é certeira: “Em vez de cometer suicídio, as pessoas vão para o trabalho”. De autoria do austríaco Thomas Bernhard, a sentença dá tom à tragicomédia de Jimmie, o protagonista do romance de Katharina. Em um call center londrino, acompanhamos por um dia esse personagem errante.
As divagações de Jimmie podem entediar os leitores que não caírem, de cara, no humor peculiar do livro. Mas o ambiente do call center, que assume o centro da narrativa, é um grande atrativo do romance. Jimmie tem amigas suecas e catalãs, um colega de mesa alemão e um amante israelense.
Cada uma dessas figuras usa seu idioma de origem para tentar resolver as insatisfações de viajantes internacionais – assim como Jimmie, italiano de nascença. Em sua maioria, fetiches, tentativas de flerte frustradas e decepções amorosas em belos resorts paradisíacos. Dos limões, Jimmie tenta fazer a limonada, com tiradas tão cômicas quanto ácidas – o que não exclui a possibilidade de soarem azedas aos leitores.
A Ligação é o segundo livro de Katharina Volckmer, depois de uma estreia intrigante, com A Consulta (Editora Fósforo). Em seu primeiro romance, escrito em forma de monólogo, a autora explora temas como a culpa, a vergonha e as cicatrizes do nazifascismo, a partir da história de uma jovem alemã que passa por um procedimento para adquirir um “pênis judeu”.
A autora sabe definir seu estilo. A Ligação mantém o humor ácido, que busca ser sagaz e crítico. Por vezes, perdemos a piada, mas o esforço é válido. A escritora entrega dois livros distintos em termos formais. Longe de monólogos, Jimmie ganha novos contornos em suas interações com os colegas do call center – e com a legião de clientes insatisfeitos.
O romance não teme flertar com o escatológico. Suas primeiras linhas deixam isso claro: “Se você vai cagar, o mais provável é que isso aconteça na porta da sua casa”. Todas as suas camadas humorísticas convergem para acentuar a tragicomédia de Jimmie, que vive à sombra da mãe siciliana, a mais triste das viúvas.
A sexualidade, tão presente nos pensamentos do protagonista, torna-se embaraçosa quando colocada em prática. Seu caso com Daniel, o amante israelense, naufraga, os encontros entre os funcionários do call center são motivo de constrangimento e os fetiches dos viajantes acabam frustrados – o que cabe a Jimmie tentar remediar.
Sendo um jovem gay e gordo, questões como a corporalidade e o desejo atravessam a vivência do protagonista, que pinta os lábios de batom para atrair Daniel em uma das cenas emblemáticas do romance. No ato, Jimmie revela e oculta. Ele lembra saudoso de quando atuava em funerais, criando laços postiços com defuntos solitários.
Livros que se passam em um único dia costumam causar certo fascínio. Ulysses, o clássico monumental de James Joyce, é talvez o exemplo mais notório disso: trata-se de uma obra capaz de traduzir os anseios do Velho Continente no século XX. A Ligação, formalmente discreto, distancia-se da magnitude do romance joyceano, mas expressa bem os conflitos da Inglaterra do século XXI, especialmente após o Brexit.
Pertencimento é a palavra-chave no livro, o que vai além do conceito de nacionalidade. Jimmie está às voltas com sua própria identidade e com a busca por afeto em meio a uma Torre de Babel. Embora nem sempre A Ligação consiga arrancar um riso do leitor, o romance não perde a piada. Eis o tom da tragicomédia de Jimmie. •
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Por Ana Paula Sousa
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Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fetiches em um call center’